- Tá na hora de isso tudo acabar! - Ele gritou comigo, chutando a porta do meu quarto e arrastando consigo uma rede de pesca.
A tarde estava quente demais. Pude perceber a gota de suor caindo pela testa do meu pai. Não deixei de reparar também em seus olhos nervosos e inquietos, sempre procurando algo por acaso não estava ali.
- Como assim? - Eu disse cabisbaixo. Não queria encará-lo de forma alguma. Embora, já existisse mais de um mês entre o dia em que ele xingou a Sol e aquele domingo.
- Amanhã, você vai largar aquela livraria besta e ir comigo pescar. Se quiser, esteja acordado às cinco, se não, pode ir embora agora. - Seu hálito estava carregado por álcool. Não consegui digerir as palavras direito, até ele apontar o indicador entre meus olhos e perguntar se eu havia compreendido.
Eu apenas acenei positivamente com a cabeça.
Lembrar daquele beijo era dolorosamente doloroso. Minhas entranhas sentiam-se mortas, anestesiadas por querer reviver alguns simples minutos. Senti um fardo desabar por cima dos meus ombros.
Não podia sair de casa assim. Sem mais nem menos. Talvez mamãe interviesse na ideia desse bêbado.
- E se sua mãe tentar te cobrir de novo... Ela vai apanhar como nunca. - Ele estendeu sua palma da mão no ar, planejando o movimento.
Um sangue quente veio aos meus olhos. Aquilo acontecia há semanas, no entanto nunca soube o motivo.
Ela tentava me proteger. E eu, não fiz nada. De repente, percebi que devia ficar ali para protegê-la. Conversaria com o Jorge no outro dia. Meu amigo entenderia, além disso, ultimamente aquele lugar me lembra muito a inesquecível.
Senti um icebergue de culpa me esmagando. José saiu em direção à cozinha. Novamente, estive sem rumo. Quem sabe pedir desculpas? Afinal, eu errei.
Observei o canto da parede do cômodo durante muito tempo. Havia formigas andando por lá. Marrons. Pareciam felizes. Livres.
Não consigo acreditar que ela submeteu-se a esse louco por minha causa. E, agora, eu teria que me submeter a ele.
Quando levantei da cama, ouvi o barulho das molas velhas e segui rapidamente para a cozinha. Tudo muito branco. Armários brancos, geladeira branca, fogão branco, mesa branca, apenas as cadeiras eram marrons.
José estava perto da janela bebendo. Teresa, lavando as louças. De onde nos encontrávamos desejei que ele não pudesse ouvir a conversa.
- Por que você fez isso? - A voz saiu rouca demais.
- Fez o quê, meu filho?
Ela me olhou com aqueles olhos. Grandes e redondos. Negros como o véu que a noite usa. Enxugou a testa com um pano, virou-se de tal forma que seu corpo ficou apoiado na pia e passou a me observar.
Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Sete hematomas visíveis. Por minha causa. Um pior do que o outro. Dois no braço direito, médios. Três no esquerdo, pequenos. Um enorme na perna. E outro no rosto.
- Apanhou por minha causa.
Teresa desviou o olhar para o chão.
- Uma mãe protege seu filho - ela sussurrou para si mesma ou para mim?
Minha cabeça já tinha perdido seu mapa de perguntas. Mamãe começou a morder o canto da unha, e fez um sinal com a cabeça para sairmos dali.
- Não podia deixar que ele voltasse a fazer o que fazia antes, Tiago.
- Faz dez anos, mãe. Posso me defender.
- Eu sei, eu sei. Mas fiz o que tive medo de fazer antes.
- Mãe... Des-desculpa. - saiu, falhada, trêmula e desajeitada, mas saiu. Ela me abraçou carinhosamente, aproveitando cada segundo.
- Ele não vai te bater mais. Eu prometo. - continuo.
- Não se preocupe, Tiago. - Ela sorriu largamente.
Quando me soltou, pude notar que seus olhos estavam cheios de lágrimas.
- Posso fazer mais uma pergunta?
- Sim, lógico.
- Foi por causa da Sol?
- N-não. - Mamãe gaguejou.
- Pode falar...
- Foi.
Cambaleei um pouco, antes de poder processar o que acabava de entrar por meus ouvidos. Dei um segundo abraço na mamãe e voltei para o quarto.
Sentei na beirada da cama, sentindo-me zonzo. Aquilo tinha que ser mentira. Finalmente, liguei alguns pontos, desde a minha infância até aquela noite no beco. Parecia que tudo se encaixava perfeitamente, naquele momento. Mas... Não podia ser verdade.
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Sol
Romance*Editando "Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro, ó ser humilde entre os humildes seres, embriagado, tonto de prazeres, o mundo para ti foi negro e duro. Atravessaste no silêncio escuro a vida presa a trágicos deveres e chegaste ao dever de altos s...