28. Manhã Dois

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"Um filhote de leão, raio da manhã

Arrastando o meu olhar como um ímã

O meu coração é o sol, pai de toda cor

Quando ele lhe doura a pele ao léu

Gosto de te ver ao sol, leãozinho

De te ver entrar no mar

Tua pele, tua luz, tua juba"

Caetano Veloso, Leãozinho

Não dormi. Estava tudo muito certo. Estava tudo muito legal. Por mais que as mulheres fosse gentis e insistissem para que eu voltasse, meu castigo estava chegando.

Fizeram uma mochila com comida e água, além disso, entregaram a mim uma camisa nova. Salmão. Irônico.

Voltei à caminhada faz algumas horas. Confesso que o Sol não ajuda nem um pouco, queima-me. A cidade ainda está longe, apesar de o meu ritmo ser melhor que anteriormente.

A lembrança da menininha loira vem a mim. Ela era uma graça. Suas perguntas bobas fizeram-me sentir novamente adolescente.

— Qual sua cor favorita?

— Não tenho — desenhei um sorriso triste em meu rosto — e a sua?

— Rosa! — A mesma da Sol. Ela me persegue por todos os cantos. A noite passada ao lado da Júlia e das loiras foi agradável. Todavia, preciso continuar.

Elas me contaram histórias e histórias de andarilhos. Contei a elas que havia perdido minha família para o obscuro, mas não contei como.

Estou suando frio da mesma forma que aquela noite. Estou enlouquecendo novamente. Sofia.

Você já amou tanto uma pessoa que lhe daria todo o seu sangue, literalmente?

Aquela noite.

Quando ela se tornou tão importante? Quando ela sugou toda a alegria e incorporou-a em si? Quando? Seu sorriso quase reflete meu espanto. Quase.

— Por que você chora, princesa? Está com medo? Já lhe disse, estou aqui.

— A porta não está trancada — respondeu com olhos molhados.

— Estou aqui.

— Estou com medo do escuro.

— Estou aqui.

— Eu quero a mamãe.

— Estou aqui.

— Pai...

— Estou aqui.

— Cadê a mamãe?

— Estou aqui.

— Pai! Não! Mãe! Mãe! Mãe!

Existem rosas saindo pela sua garganta. Rosas vermelhas. Rosas aveludadas como o amor de uma borboleta. Rosas belas. Rosas vermelhas. Rosas rosas. Rosas líquidas. Existem rosas pelas suas narinas. Sua vida em flashes passa em uma tela aqui, bem aqui no meu peito. Rosas, rosas lindas e aveludadas. Rosas, lágrimas, ela pede mais uma vez pela sua mãe, enquanto a lâmina rasga seus tecidos outra vez. Espalhando rosas por todos os lados, até mesmo em seus cabelos negros tão alaranjados... Tão... Tão Sol.

Você já amou tanto uma pessoa que quis seu sangue? Eu já. Eu a amei. Não me julgue, leitor, eu a amei. Mas ela era a Sol, a Sol-menina, a Sol que não salvei, a Sol-sorridente, e não a Sol-mulher.

A lâmina corta seus intestinos. A lâmina resplandece em minhas mãos, brilhante, poderosa. A Sofia não precisaria sofrer nunca mais. Nunca mais.

— Não tenha medo do escuro, princesa. Estou aqui.

Dois anos. Dois anos ao lado de uma criança tão linda e confiante. Dois anos passaram-se desde o dia de seu nascimento. Sofia.

O prazer de ter sua vida nas minhas mãos não pode ser igualado a nada. A nenhum cachorro ou gato ou pássaro, ou ao pescoço da Sol em minhas mãos. Não pedi para ela nascer. Não pedi. Então, não há motivo para estar aqui, princesinha.

O amor da Sol por essa criança é injustificável. Sofia é como um cachorro solto e descontrolado. Não há porquê amá-la. A morte é a melhor saída. Não pedi para que nascesse e só percebi agora que devo matá-la. É minha tarefa.

Impulsionei a faca com as duas mãos contra sua barriga e seus olhos esbugalham-se, vermelhos, chorando rios de sangue.

Eu a amei. A ninfa solar entenderá meus motivos. Amei-a conforme meus padrões. Amei-a por dois anos, já não está bom? Quando Sofia incorporou toda a alegria da Sol em seus poros? Quando?

Eu a amo, logo a matei. E, farei o mesmo com quem estiver contra. Dois anos e já quis imitar os trejeitos da mãe. Dois anos e suas ondas negras-alaranjadas eram indistinguíveis às da Sol.

Não suportaria mais um segundo colocando-a para dormir. Olhando em seu breu negro a foto da minha alma. Sofia, o escuro já se foi.

Seu rosto tornou-se fosco. Poderia ser uma "das boas". Porém preferiu ser a Sol, quis ser igual a ela. Mesmas ondas, apesar de negras, eram, por dentro, alaranjadas. Mesmo olhar mortífero. Estava morta. O que poderia fazer? Merda. Merda.

Minha mulher compreenderia no final, a necessidade da sua morte. Entenderia o meu amor por ela. Como a amo. Como seu cheiro atiça meus hormônios. Como meu coração ainda bate três vezes mais rápido quando suas mãos acariciam meu couro cabeludo.

Um laço inseparável amoroso. Forte. Um magnetismo sem igual. Sol me perdoaria, certeza.

Não havia espaço para o talvez dessa vez. Não havia espaço para as incertezas do espelho. Não havia espaço para respostas abstratas. Shots ou livros. Miados ou latidos.

Um som me perturbava. Estava suando frio. Eu a havia matado. Eu, no delírio, havia matado nossa família. Seus lábios estão banhados por sangue. O calor do corpo dispersando-se pelo ambiente. Seus olhos estão abertos, obscuros.

Sofia sabe o que fiz. Abaixei suas pálpebras e delineei seus contornos com os dedos.

— Ah, S-Sofia. Ou seria "Sol"?

A mãe havia ido à farmácia, comprar um remédio para cólica. O grande amor da minha vida entenderia. O grande amor da minha vida me perdoaria diferentemente de você, leitor.

Minhas mãos foram de encontro ao pescoço da menina.

— A culpa é sua! — Apertava mais e mais e mais. Algumas lágrimas trilhavam até minha boca. A culpa é dessa idiota morta aqui! A culpa é dela! A culpa é dela! Não pedi para que nascesse. Perdi meu grande amor para esse projeto de Sol.

— Tiago? — Minha pequena estava ali. Intacta. De vestido branco e com uma sacola plástica mas mãos. Olhos enormes, marejando-se. — O q-que.. O que...

Soluçou, soluçou, chorando aos pés da cama. Retirei as mãos da Sofia, colocando-as nas costas da Sol. Ela entenderia. Ela entenderia?

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