20. Lua

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" There is no sweeter innocence
Than our gentle sin
In the madness and soil of that sad earthly scene
Only then I am human, only then I am clean
Amen, amen, amen" *

Hozier, Take me to church

                            

Carta achada no fundo da gaveta da cômoda da Sol

Querida Manuela,

Sinto que estou caindo. Sinto a primeira lágrima também. Sinto uma bigorna esmagando minha cabeça. Sinto um tiro atravessando neurônio por neurônio. Sinto a vida fugindo, correndo, sem olhar para trás. Sinto a minha ultima força indo embora. Dizendo adeus. Sinto que me perdi nesse caminho de via única.

O plano era perfeito. Sem defeitos, teoricamente. Não contei com o coração acelerado. Nao contei com os beijos e abraços. Não contei com o "era uma vez" nem com o "felizes para sempre". Não contei com um casamento repentino com o Tiago. Não contei com a visita ao cemitério.

Só queria conhecer meus pais. Mas, o tropeço da vida foi maior do que eu pensei. O tropeço me fez cair de nariz no chão. Olho para baixo. É o túmulo de meu pai. Eu... Eu não consigo articular as frases.

É muito. Ele está morto sob meus pés. A sete palmos. Ele está morto. Sinto me tonta e encaixo novamente minha massa nos braços do meu marido. Ele, morto. Eu não consigo, Manu. Tentei. Nossos esforços foram em vão?

Quantas perguntas não respondidas? Quantos dias amargos torturei-me para saber a resposta. O motivo. O belo motivo para vender uma menininha. O tão grandioso motivo o qual justificaria seus atos?

As labaredas infindáveis outrora tão quentes, agora queimam sob um manto de gelo. A dor perpassa cada fibra, cada centímetro e cada célula do corpo. Olho para ambos os lados: meu marido aperta-me, enquanto uma senhora de cabelos claros fita o chão, descrente.

Essa mesma senhora, horas atrás chorou de alegria, agora, está chorando de tão triste. Lembranças as quais nunca lembrarei devem passar em sua mente. Imagino tais cenas: o Natal, a Páscoa, meu "aniversário"...

Datas que passei aí, Manu. Datas que passamos juntas inventado casos para nos entreter. Às vezes, atendendo homens nojentos e repugnantes. Aliás, você ainda está viva, amiga?

O extremos se uniram. A vida que tive passou de um cilada para meu ego. A gravidade tornou-se mais forte ou era apenas minha impressão? A visão turva me atrapalhou a continuar a olhar o túmulo. E caí. Fui ao chão como as bolinhas de Galileu. Os extremos haviam se unido. Os extremos: a vida e a morte coexistiam debaixo do osso esterno.

As gotas de lágrimas derramadas penetraram a pele e estiveram guardadas durante todo os anos. O tempo foge de mim. A alegria corre. Vive correndo da minha alma. As lágrimas derramadas, agora, saem do meu corpo, rasgando-me e cortando fatias do meu peito para oferecer à Morte como aperitivo.

E ele, está aqui, Manu, sob meus pés. Ele me vendeu, e está morto. Ele não me quis e está morto. Mas, já não estivera antes quando morri para ele?

E ela, esta senhora de cabelo brancos reluzentes, por que não o impediu? Olívia, o nome dela, por qual razão não me procurou? Lembro de sua palavras de ontem à noite...

" Não tínhamos condições de lhe dar uma vida digna, então, seu pai lhe levou ao orfanato..."

Não era um orfanato. Estaria mentindo? Ó, Manuela, você não sabe quão apertado meu coração se encontra. O oxigênio não entra e estremeço contra o corpo do Tiago. Meu marido.

Não contei para minha suposta mãe para onde papai havia me levado. Mas, chorei. Chorei como nunca ao pousar meu rosto em seu colo e sentir o calor emanando dali. Chorei ao ouvir como o vendedor de filhas havia morrido: AVC. Chorei por ter achado o local de filha que ainda era reservado para mim.

Aquele verão mudou tudo, Manu. Quando a bruxa viajou e deixou-nos na casa daquela velha que... Eu não me lembro o nome. Na cidade. A recordação de ela dizendo que conheceu uma menina com cabelos alaranjados como os meus perpetuou-se em mim. Cada palavra dita, cada som que chegara aos meus ouvidos... Fez a esperança de ser filha novamente reaparecer.

E um dos grandes pivôs dessa realidade está aqui, amiga. Debaixo dos meus pés. Morto. Morto. E eu, estou aqui em cima, questionando-me se também não estou morta. Morta.

Dolorosamente,

Sol.

                            

* [ Não há inocência mais doce
Do que nosso suave pecado
Na loucura e imundície dessa triste cena mundana
E só então sou humano, só então estou limpo
Amém, amém, amém ]

Sol Onde histórias criam vida. Descubra agora