27. Madrugada Um

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"Hello from the outside

At least I can say that I've tried to tell you

I'm sorry, for breaking your heart

But it don't matter, it clearly doesn't tear you apart anymore"*

Adele, Hello



Os sonhos desmembrados em minha mente passam de uma imagem. São realidades. A dura e triste realidade. Encarar o céu sem Sol. As labaredas infindáveis findaram-se.

Os sonhos desmembrados, quadro a quadro, dia a dia, noite a noite, segundo a segundo. Vida após vida. Os sonhos desmembrados, acabados, manchados com petróleo cru. Escuro, negro. Alma. As paixões desacreditadas desaparecidas no túnel vivido. O passado engolindo tudo pela frente. Futuro. Presente.

Os sonhos desmembrados desacreditados desaparecidos de um quadro, às ruínas de um castelo, junto a um pedido sincero de "desculpas". Persistente, insistente, indigente. O sonhar com uma paixão deixara-se levar pelo vento polinizador de miséria. O sonhar desmembrado acabado. That's over, baby.

Acabou-se. Apagou-se. O outro lado do céu fora perpetuado pelas minhas lembranças jorradas em lágrimas. A dor abrange pulso a pulso. Rasga-me em dois. Dois Tiagos. Duas vidas ambíguas. Hoje, o Sol se pôs ao meio-dia.

Baunilha. É assim. É sem cor. Sem vida. São versos de um poema desmembrado, formando minha trajetória caótica. Sem cor. Sem sabor. Sou eu por mim mesmo. É meu auto-retrato. Gostou? Foda-se.

São realidades de vários céus, vários Sois, vários dias perdendo inúmeras cores. São realidades de tirar-lhe o fôlego. É a morte, leitor. A morte ao seu lado, bocejando e você apenas dando de ombros. A morte está contigo. Assim como o oxigênio. Aquela dorzinha deve estar voltando agora. Mas lhe afirmo com a maior das certezas. Não há amigo mais leal que ela.

Nessa infinidade de realidades, houve apenas um Sol. A minha. Não sei na sua morte, nessa sua realidade-casca-de-ovo, houve um Sol tão lindo quanto a minha. Cada um com a sua morte. E ela com todos.

Baunilha. Tempo. Fogo. Labaredas infindáveis. Devaneios. Sabedoria. Quem eu era versus quem sou. Jurei ter ouvido meu nome. Jurei ter ouvido ela me chamar. Em quantos segundos deixarei de respirar?

O céu de lá fora está permeado por sangue. Sem cor. Com cheiro. Baunilha. As cores fugiram-me. O demônio sob minha carne consome os pecados como doce em festa de criança. O céu está lá fora. Sangrando por mim. Sangrando pela Sol. Sangrando pelos meus... Bem, ela era linda.

Meus olhos estão ardendo. Sono. Eterno. Baunilha. Fome. Paraíso. Perdição. São versos de um poema desmembrados, formando minha vida. Vida? Eu estou morto.

A ladeira dentro do meu peito está aberta. Chama-lhe. Venha. Você gostará do cheiro baunilha. Você gostará de beijar Judas. Venha para meu sonho maltrapilho. Venha para a realidade sem cores, sem vento, sem dia ou noite, sem vida, sem Sol.

O beijo dos beijos. A língua sobreposta à doença. Ao amor sem limites. O amor lutando contra uma obsessão. Uma loucura. O amor, fraco amor, você não é ninguém para sobreviver aos desejos humanos. O beijo dos beijos. O beijo da pequena menina flamejante.

A leoa mortífera.

Seus olhos flamejavam lágrimas sangrentas. Pelo menos, vi seu último sorriso, seu último rubor. Enxuguei sua ultima lágrima. Ouvi suas últimas palavras e beijei-a, delicadamente. Como naquele dia. Como naquela noite. Como o Tiago verdadeiro faria. Um beijo morno, calmo e certeiro. Um beijo que confirmava com todas as letras: eu a havia perdido.

Seus desejos singelos eram como passos de uma bailarina aos olhos de seu mestre. Simples, fáceis. Ser mãe. Ter família. Um nome. As ondas alaranjadas caídas sobre seus olhos ainda levam-me a devaneios incontáveis e a inegáveis viagens pelo mar da morte.

Bati três vezes na porta. Toc-toc-toc.

Uma moça tão... Jovem. Quase uma criança, loira, olhos grandes e sorriso largo.

— Maaaaaaaaaaaaaaaanhê!

— Calma, calma. A... J-Júlia me mandou para cá. — Quando era a data que ela falou mesmo? Doze de janeiro? Vinte de janeiro?

— Qual o aniversário dela? — Uma mulher-xerox da menininha apareceu na porta.

— Do... — a mulher loira fechou a cara — Dezenove de janeiro.

— Entre, seja bem-vindo. Sou a Sara, cuidaremos de você. — respondeu automaticamente de uma forma tão mecânica quanto um robô, dando a impressão de que não sou o primeiro nem serei o último.

Hesitei. Quem, afinal, faz caridade desse jeito a um estranho?

— Tá tudo bem, cuidamos dos andarilhos.

— Preciso chegar à cidade e estou com muita fome...

— Entre primeiro, amanhã você segue sua viagem. Durma aqui e coma também. Venha.

Entrei timidamente. A menininha puxou meus braços buscando por atenção:

— Por que você está sem camisa? É feio isso...

— Eu... Bem... Bem... A minha estava suja, sabe? Tive que tirar.

— Sente-se, huh, qual o seu nome? — Salvo pela Sara. A mesa estava posta fartamente. Minha boca salivava insistentemente. A fome era quase insuportável àquele ponto.

— Tiago.

— Certo, Tiago. Pode se servir, não mordemos.

Os fotóns dançavam por entre os fios dourados. Acariciando-os levemente. Lembrava-me a Sofia. Sua inocência tão infantil e tão esperançosa. Estava deitada nas pernas da mãe, enquanto a mulher fazia uma trança em seus fios.

A morena havia chegado há um tempo. Seus olhos negros pousados sobre as páginas do livro dançavam sobre as palavras rapidamente. E a menininha me encarava.

Qual é, Sol? Como assim? Três não, duas mulheres e um terço de uma abrigam um cara do nada em casa?! Qual é?! Isso é piada. Obrigada, pequena.

A mãe era carinhosa. Muito, por sinal. As ágeis mãos tornavam os fios outrora desalinhados, agora presos a um penteado fino. Mãe. Teresa.

Outro defunto da minha história. Queimada. Minha falecida mãe. Minha amada. Quem me amou, quem amou o traste verdadeiramente. Um exemplo a todos de que amor exist... Porra! Porra nenhuma! Existe porra nenhuma.

Não há salvação. Apenas ciclos. Continue, Tiago. Voz maldita! Voz maldita! Mais um passo, mais uma lágrima escorrendo sobre a bochecha. Porra. Não. Há. Salvação. Ponto final.

Ponto final.

No relato dos bombeiros, alguém colocou fogo na casa. Quem será? Não sei. Não sei.

Apenas sei que naquela noite, o capeta retornou ao inferno. José também morreu. Daria meus últimos bens apostando que o filho da puta fez isso enquanto estava bêbado. Aposto. Mas não sei. Sinceramente não sei.

Não sei mais nada. Todos estão mortos... E o que estou fazendo aqui mesmo? Nada.

É apenas uma questão de tempo. Não quero ficar em uma realidade desmembrada, sonhando com Sois sem cores e tudo o que poderia ter acontecido. Se há outros céus sobre esse céu, apenas ela saberá. Sua companheira invisível, pronta para atacar. A Morte. Morrerei, Sol.

*[Olá do lado de fora

Pelo menos eu posso dizer que eu tentei te dizer

Me desculpe por partir seu coração

Mas não importa, claramente isso não te machuca mais]

Sol Onde histórias criam vida. Descubra agora