25. Madrugada Um

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"O meu desafio é andar sozinho
Esperar no tempo os nossos destinos
Não olhar pra trás, esperar na paz
O que me traz
A ausência do seu olhar"

Leandro Léo, João de Barro

                            

"No fim, ele se arrependeu". Era o que dizia o bilhete escrito com as letras curvilíneas da Sol ao lado do Crime e Castigo. "No fim, Raskólnikov* se arrependeu".

O livro estava em cima da cama quando saí. A capa vermelha do livro arrancada fora colada de qualquer jeito. Era meu preferido. Era o que mais me representava naqueles anos.

Felicidade nunca será o suficiente. A vida nunca bastará. Estou zonzo, e isso é uma merda, já que não consigo formular uma frase sequer a mulher que anda a minha frente.

Um zumbido. Lembro de ouvir um zumbido antes de tudo. A Sol veio até mim, em passos tão cautelosos como se pisasse em vidro. Veio a mim como um cordeiro para o abate. Alva, pequena, alaranjada.

Estou sentado na beira da cama. A dor de Raskólnikov* penetra em minhas células. Tateando a culpa e o medo. O plano e a saída. A Sônia**, a doce Sônia, que tanto sofreu e pouco viveu. O crime tem seu castigo.

O livro ficara com a Sol, no fundo da gaveta, durante muito tempo. Até ela me devolver no dia que o canto das aves sobrepôs-se ao grito da sabedoria.

O crime tem seu castigo. As páginas passavam por meus dedos, atritando a pele e provocando breves arrepios em minha espinha. Lembro claramente das palavras do protagonista:

"Matei por matar, matei só para mim [...]".

O frio traz-me de volta à realidade. Não tenho o livro, não tenho a Sol, muito menos a sabedoria. Só tenho essa mulher que anda a minha frente. Passos curtos e rápidos. Os cabelos balançam sobre suas ancas. Para lá e para cá. Um ritmo compassado, frenético, e ameaçador.

Observá-la é estranho. Meu estômago ronca pela milésima vez. Na aguentarei por muito tempo a fome. Estou zonzo e sei que há pouco para eu desmaiar.

A vida nunca me bastou. A felicidade plena vinha em momentos absurdos com animais... Essa moça aqui não deve imaginar os horrores que cometi. Por que ela está me ajudando? O céu está negro. Uma estrela. Apenas uma.

"Perdi-a para o céu, porque ela estava cansada de se deitar com o demônio".

Sol. Um nome tão pequeno para quem nunca teve um. Cabelos fogosos de cetim. Meu doce soar da vida e minha labareda infindável de amor. Seu nome está cravado em minha língua.

- Sol. - As lágrimas voltam a queimar minha pele. Culpa. Medo. Ânsia.

- O que você disse? - A mulher parou e virou-se para mim. O nariz era pequeno e a boca carnuda.

- Não vou aguentar. Estou com muita fome. - Menti, mas ainda assim era verdade.

- Calma, estamos chegando. - Voltou a andar, porém desacelerou o passo. Talvez para me poupar ou porque estava cansada também.

Uma vida ao seu lado que foi desperdiçada. Uma vida ao lado de tantas pessoas, de tantas outras vidas e ela era minha. Ela era o pássaro machucado que não cuidei. Mas por que cuidar? Sol era autônoma. Conseguiu se curar da prostituição, do estupro e dos abusos sozinha. Enquanto eu me afogava em um caminho sem volta.

Meus pensamentos voltam ao livro. À culpa de um vagabundo. Jorge.

Depois daquele Natal desastroso, vimo-nos mais uma vez: em seu enterro. Morreu bêbado. Acho que essa é mais uma passagem que dev...

- Qual o seu nome? - A mulher perguntou rapidamente.

- Tiago e o seu? - Cale a boca, por favor.

- Júlia.

- Prazer em te conhecer. Aonde estamos indo?

- Minha casa.

- Huh. Obrigado.

- Não há de quê.

Onde estava? Ah, sim. Jorge.

Era um sábado, a Sol ainda estava grávida. Atendi o telefone e era o José, pensei em desligar em sua cara, mas ele foi mais persistente ao falar que era sobre Jorge e que, em hipótese alguma, ligaria para mim.

A história fora contada rapidamente por um sentimento asco criando entre nós. Que o inferno lhe seja quente...

Jorge morreu em um acidente de carro. Quase desmaiei quando soube a notícia. Ele estava bebendo em um bar, próximo à praia quando pegou uma carona com um desconhecido. Ambos bêbados, o carro estava na contramão e um caminhão não conseguiu desviar. Um pedaço de ferro atravessou seu crân...

- Chegamos. É ali. - A mulher intrometida apontou para um casebre com uma luz pequena brilhando.

- Você não vem?

- Não, por enquanto. Vá lá e diga que meu aniversário é no dia 19 de janeiro. Eles cuidarão de você.

A estrela ainda estava no céu. Sozinha. Brilhando e brilhando. Ofuscando todas as outras. Um dia, Sol, seremos duas estrelas. Mas, por enquanto, apenas continuarei.

                            

* Raskólnikov: protagonista do livro Crime e Castigo, do Dostoiévski, que mata uma senhora e uma jovem por causa de dinheiro e é atormentado pela culpa. No fim, ele confessa que matou por matar e se arrepende do crime.

** Sônia: apelido de Sofia; no livro, anteriormente citado, ela é uma jovem prostituta que acaba se apaixonando por Raskólnikov.

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