22. Preto

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"His palms are sweaty, knees weak, arms are heavy
There's vomit on his sweater already
Mom's spaghetti, he's nervous
But on the surface he looks calm"*

Eminem, Lose Yourself

Inspirávamos o mesmo ar puro. Expirávamos o mesmo ar pútrido, disforme, morto, cadavérico. Cada vez endensificando-se, fundindo-se mais
às lágrimas derramadas pelo céu negro, apagado, enovelado ao passado. Corpos vazios, sem alma. Copos cheios, sem nada. Vida quão insignificante, vida. Ventilávamos o mesmo ar. O mesmo ar. No mesmo lar.

Todos ao redor de um grande círculo negro. A mesa ora pendia para a esquerda, ora para a direita. Enquanto mastigava, a vontade de estar sozinho adentrava meus poros. Quem dera a visão embaçasse para que não pudesse ver aqueles olhos. Olhando para mim. Quem dera eles olhassem para si ao olhar para mim.

A ninfa levantou-se educadamente exalando uma falsa elegância. Estava farto. Retornei meu olhar para a comida. Era bom poder comer um pouco do tempero da dona Teresa. Mas isso não significa que seria bom tê-la ali. Sobretudo, ao lado dele.

Seus olhos brilharam ao me ver mais cedo, antes desse jantar. Brilharam de sei lá o que. O resplandecer das lágrimas iluminaram suas íris jabuticabas. O abraço talvez fosse até reconfortante, por mais que mantivesse o ar fúnebre. As peças de seu corpo estavam velhas e desgastadas. Lábios rachados, rugas e cabelos brancos. Se algo havia sido tomado de si seria o sopro vital. Aquele quê de "quanto tempo não lhe vejo" estava escrito em suas mãos calejadas. As mãos... Durante alguns segundos, perguntei-me quem era aquela senhora. Se havia se perdido e viera parar ali por mero acaso. Mas, não. Ela era minha mãe. Ou apenas alguém que eu costumava conhecer?

Quanto a ele, apenas acenou com a cabeça em sinal de "paz". Meu orgulho falou mais alto. Não o cumprimentei. Não o olhei. Não até aquele jantar.

Queimara em minhas artérias, em minhas veias, em minhas arteríolas, em minha vida, o amargo sabor do líquido biliar em minha boca. Trazia consigo o passado e a vida desgraçada. A raiva queimava poderosa e supremamente; batia em mim com chicotes e varas. Orgulhosa. Engoli o líquido amargo e puxei meu ego do fundo da alma, do fundo do fundo da lama, do fundo do fundo do fundo do meu peito.

Quer saber a verdade? Pouco estava sentindo graça naquela situação toda. Casamento, visita de "papai e mamãe", brincar de casinha... A única parte boa ainda era o sexo. Com aquela mulher suja... Por ora ainda satisfazia-me. Cadê o amor, leitor? Ficou no livro. Cadê o Tiago romântico? Ficou em uma livraria. Procure-o na seção romances para tias-que-nunca-casaram.

Ainda a amo? Dentro de todos os sentimentos bagunçados e incontroláveis a amo. Mas, por que a amo? Por que seu cheiro ainda faz meu coração acelerar? Mas, por que suas palavras me fazem querer matá-la? Por que o perdoou? Por quê? Merda. Como amar alguém e não amar em dois segundos seguidos? Ela é minha mulher. Ela é minha mulher. Tenha rotina ou não, tenha sido puta ou não. Seus olhos solares são meus sóis diários.

Porém, eles ainda estavam ali. Sentados me olhando como se eu fosse o leão que os devoraria.

- Tiago? - A Sol disse docemente, despertando-me dos devaneios.

- Oi?

- Preciso da sua atenção só por uns segundos... - Ela falou colocando as mãos em meus ombros. É, eu a amo, e venho sendo injusto com ela esse tempo todo. Quem sabe perdoar não fosse o certo a se fazer...

- Lógico, meu amor - seus olhos cresceram e me virei para beijar os nós de seus dedos pequeninos.

- Obrigada. - Sussurrou - bem, senhora Teresa e senhor J-José - quase engasgou com o nome do patriarca - obrigada por virem até aqui para passar o Natal, que é depois de amanhã, e receber a notícia. É muito gratificante ter vocês conosco, não é, amor?

- Sim, minha pequena. - Obviamente era uma mentira, para completar o teatro faltava só eu sorrir.

- Obrigada pelo convite, Sol. - Mamãe disse, simplesmente, sem retirar nem por um segundo os olhos dos meus.

- Agora vamos à notícia?

- Sim, sim. - Teresa adiantou-se. A ninfa parecia impenetrável naquele momento, como poderia reger tão bem o passado e o presente? Parecia feliz, impecável. Eu a amo. Desde sua beleza aos tempos de puta. Eu a amo. Eu amo a minha Sol da mesma forma que o Tiago da livraria a amava.

- Fale, amor.

- Estou grávida.

Definitivamente, eu não a amo.

*[As mãos dele estão suando, joelhos fracos, os braços estão pesados
Já tem vômito na blusa dele
Macarronada da mãe, ele está nervoso
Mas na superfície parece estar calmo]

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