26. Estrela

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"Birds flying high you know how I feel

Sun in the sky you know how I feel

Reeds drifting on by you know how I feel

Its a new dawn it's a new day its a new life for me

And I'm feeling good"*

Cy Grant, Feeling Good

                                                                                                       

Carta da Sol à Desconhecida devolvida pelos Correios

Querida Desconhecida,

A escuridão de um novo mundo abrira-se horas atrás. Fino, ainda ralo, emaranhado uns aos outros, fios de ouro negro. Escuro, fosco. Como a noite sem estrelas, como um buraco negro, como a caverna de Platão abandonada.

Sofia. Minha Sofia. Pequena Sofia.

Os dedos pequenos inquietos. A pele tão macia quanto o vento. Pequena, cabelo preto breu. Ora mergulha de cabeça em um doce sono ora chora reivindicando seu lugar em meu colo.

Ficaria orgulhosa se a conhecesse, desconhecida. Sofia é linda. Quem diria? Quem ousaria dizer que eu pudesse ser mãe? Que ousaria dizer que contemplaria, algum dia, a vida mais pura e perfeita nos braços prostituídos? Quem eu sou?

Sol. Mariana. A vida corre a passos rápidos e incontáveis. Sol.

Quem eu sou para ser mãe de uma bebê? E se ela descobrir? E se...? Meu Deus, o que farei? Ela continuaria me amando?

A dor assola meu peito ainda hoje. As noites de torturas naquele bordel renderam-me mais do que alguns frequentes hematomas na pele. Renderam-me um coração destituído de luz.

É tão alto. É tão nervoso. É tão sombrio. Como seus cabelos. Como os olhos do Tiago. Os gritos são altos. Os pedidos por socorro são altos. Homens nervosos, impiedosos. Ainda ecoam na minha mente, ainda estão guardados no canto mais fundo da alma, a identidade, a verdade e a Mariana.

Esta estará sempre aqui. Mariana. Sol. Aquela manhã na esquina. Um livro. Um par de olhos. Um Tiago. Uma Sol. Uma Sofia.

Não haverá prazer maior do que olhar em seus olhos. Não haverá prazer tão grande quanto presenciar seus primeiros passos. Não haverá melodia mais doce do que sua voz chegando aos meus ouvidos e me chamando. De mãe.

A batida do meu coração falhará. Minha respiração parará. E enfim, poderei morrer dignamente, pois sou mãe. Finalmente, mãe. Finalmente. Nunca mais teria que retirar nenhuma "sementinha" de dentro de mim.

Ela terá infância. Ela terá a vida que não tive e, se Deus me permitir, ela nunca olhará por uma janela buscando o seu nome. O seu verdadeiro nome. Este estaria em seus lábios aveludados e não cortados: Sofia. Estaria marcado em sua pele. Em sua alma. Não buscaria um astro no céu para iluminar o seu desespero interior.

Sol. Mariana. Helena.

Desconhecida, fora este o nome pelo qual minha verdadeira mãe me chamou. Helena. Tentei engolir os fonemas quando o pronunciei pela primeira vez. Não obstante, não os engoli. Neguei-os.

Sol. Meu nome é Sol. Quando estive debaixo do José fui Helena. Isso, no pretérito perfeito. Fui Helena. Quando o Tiago perguntou-me meu nome, era Sol. Sol.

Ninguém lutou as minha guerras por mim. Cada dor, cada machucado, cada hematoma, cada aborto. Eu senti. Minha escuridão. Cada sorriso, perfeito ou não. Cada brincadeira com a Manu. Cada dia vivido sonhando com o banho de Sol. Era eu ali. Era meu corpo e minha alma ali, sendo corrompido-os, enegrecidos. Perpetuamente. Todavia, a pontinha da esperança continuava em meu corpo. Pequena, forte e inabalável. Brilhava tanto quanto o Sol do meio-dia. Tanto quanto a minha vontade de ser mãe. Tanto quanto a minha vontade de voltar para casa e perguntar o porquê, o que eu havia feito de errado.

Aquela janela eram meus devaneios. Aquele mês foi minha salvação. Você foi minha fada madrinha.

A janela pela qual via o Sol ir embora. O mês que conheci o Tiago. A mulher cuja casa regou a alma de uma prostituta. A mulher que contou a mim meu passado e a existência dos meus pais. Por causa dos cabelos flamejantes.

Agradeço-lhe por tudo. A Sofia está viva por sua causa. Inspirando, expirando, inspirando, expirando em meus braços. Minha pequena.

A primeira vez doeu. A segunda. A terceira. Na centésima quinta a dor era mínima. Por mais que o nojo se conservasse.

A cafetina tinha que viajar por causa daquela tosse estranha que não passava há dois meses. Com o intuito de faturar mais e bancar a viagem, me mandou juntamente com outras três meninas para sua casa. Ela só não contava com a liberdade que nos dera enquanto estávamos com você. Só não contava com as histórias que ouviria a respeito do meu passado. Só não contava com um garoto ingênuo vendendo livros numa livraria de esquina.

Nada tirará de mim a minha Sofia. Nada. Já passei por diversos abortos no bordel. Mas, dessa vez, ninguém tirará meu bebê. Ninguém. No. Mundo.

Por alguns instantes, meu mundo desabara naquela noite. Era muita coisa para assimilar. Estava apaixonada pelo filho de quem me vendeu. Ele havia me estuprado pelo bel prazer de me consumir, segundo o que ouvi atrás da porta da cafetina. Pelo bel prazer de me ter. Bel prazer.

Achei em um primeiro momento que o Tiago era igual a ele. Quando o atirei na cama. Quando o consumi para meu bel prazer. Para não me machucar. Para não ser estuprada novamente pelos mesmos olhos negros. Pelo mesmo nariz romano.

Desconhecida, apenas sei o quanto amo-o: menos do que a Sofia. Darei tudo por essa menininha em meu colo. Cada pedacinho da minha alma, cada força do meu corpo. Até mesmo a minha vida. Porque a amo. Isso é tudo que tenho a lhe dizer. Quanto ao resto, são histórias de uma prostituta menina procurando os raios de Sol na escuridão do porão.

Alegremente,

Sol e Sofia.

                                                                                               

*[Pássaros voando alto, vocês sabem como eu me sinto

Sol no céu, você sabe como eu me sinto

Bambus balançando sozinhos, vocês sabem como eu me sinto

É um novo amanhecer, é um novo dia e é uma nova vida para mim

E eu estou me sentindo bem]

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