"Teus olhos, meu clarão
Me guiam dentro da escuridão
Teus pés me abrem o caminho
Eu vivo e nunca me sinto só
Você é assim, um sonho pra mim"Tribalistas, Velha Infância.
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A criança está perdida em algum canto da minha alma. Encolhida, chorando e soluçando desesperadamente. Enquanto tenta conter as lágrimas molhadas que saem sem permissão dos seus olhos.
A criança, com joelho ralado por causa da queda de bicicleta, só pensa em uma maneira de pedir perdão ao seu pai. A criança, com o cotovelo ralado daquela pelada de rua, sente-se culpada. A criança solitária, não permite a si mesmo uma pausa. O menino se pune por não ter ido à aula.
Chora rios e rios. Veste farrapos velhos e mal-cheirosos. A criança tem medo da força do homem. Muito medo, por sinal. Está frio demais para se cobrir apenas com um pano verde-musgo velho.
A criança, sentada no canto do cômodo, suplica ao Desconhecido por ajuda. Pede para que o homem não volte. Enquanto soluça e sente a dor no peito lhe rasgando em dois. Sente dor em todo o corpo por causa da surra que levou.
A criança sou eu. Sou novamente criança. O homem levou a menina naquele dia. E, levaram-na horas depois.
Vejo-me dentro do corpo do Tiago-criança, encarando a pequena menina no outro canto do cômodo. Ela não chora. Ela não sorri. O nada a domina. Não sei seu nome. Não a conheço.
Puxei a respiração, sugando catarro para a voz sair mais facilmente.
- Qual o seu nome? - não olhei seu rosto.
Ela não me respondeu. Talvez nem soubesse, tão pequenina. Cabelos claros, suja. Eu assisti ao que meu pai fez com ela.
Sei que estou em casa. Sei que nunca vi essa menina. Sei que o José a trouxe pelo braço e a jogou aqui no meu quarto. Ao se deparar comigo aqui, soltou a menina por alguns minutos.
- O que faz aqui, demônio? Esqueceu de que tem que ir pra escola?! É?! - O homem puxou-me pelos cabelos, jogou o meu corpo no chão com força. Senti minhas costelas colidindo contra o chão duro. Eu havia faltado aula por causa da tarefa que não fiz.
Meu pai não esperou minha resposta para me atirar contra a parede. Bati a cabeça, senti o sangue escorrendo pelo meu nariz. "Onde está mamãe?".
-Mãe! Mãe!
- Não está aqui, diabo. Fica quietinho ali no canto, que eu vou cuidar dessa rapariga aqui. Se você abrir a boca, eu te mato. Ouviu?
Comecei a chorar. O homem chutou minha barriga e rolei até o canto do cômodo.
A menininha gritava muito. Não sabia o nome para aquilo até uns anos atrás. Estupro. Qualquer um podia perceber seu desespero debaixo daquele monstro. Os soluços aumentavam com o passar do tempo. Enfim, meu pai parou. Levantou. E nos trancou ali.
- Não sei. - Ela me respondeu baixinho, novamente começando a chorar. Seus olhos eram amarelos.
- Como chegou aqui?
- Eu estava... Eu... Meu pai me entregou para aquele homem - seus soluços ficavam cada vez mais altos. - E ele entregou dinheiro ao meu pai.
- Vai ficar tudo bem - não, nada iria ficar bem.
A menina colocou a cabeça entre as pernas e voltou a choramingar. Dez anos depois, pergunto-me se outras crianças como ela passaram por tal situação. A casa ficava sozinha durante as tardes, na época.
Não suportei o peso do corpo. Encostei a cabeça na parede e cai em uma soneca cansada. Quando acordei, o José havia voltado com uma mulher grande e gorda. A gorda usava uma saia estranha apertada demais.
- Oi lindinha! Serei sua mãe agora, seu nome é Mariana.
- Eu tenho mãe! - A menininha gritou em meio a soluços. A mulher bateu na sua cara com a mão bem espalmada.
- Sua mãe te vendeu! Agora, repete o seu nome, vadia!
- Ma-ma... Mariana.
- Agora você trabalha pra mim. Entendeu? Levanta! Sai daqui.
- E o pagamento? Ela é das boas. - Meu pai falou de forma submissa.
- Aqui - a gorda estendeu um papel para ele, e saiu levando a menininha.
Papai caminhou até a porta e fechou-a. Aproximou-se de mim, olhando-me com olhos raivosos.
- Se você abrir o bico, eu te degolo, moleque! Se sua mãe perguntar, você machucou na rua - apontou seu dedo indicador entre meus olhos, e saiu.
Às vezes, lembro-me desse acontecimento. Nunca falei o ocorrido a ninguém, contudo, após alguns meses, mamãe passou a ficar em casa durante o dia todo. E o mercado de prostitutas do José parou. Bem, pelo menos, eu acho.
Recordo aquela tarde. Aquela voz. Aqueles olhos amarelos. Amarelos como os da Sol. Nome como aquele que a senhorita-mulher se apresentou a mim. Mariana. É só uma hipótese com muita chance de ser verdade. É só uma hipótese.
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Sol
Romance*Editando "Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro, ó ser humilde entre os humildes seres, embriagado, tonto de prazeres, o mundo para ti foi negro e duro. Atravessaste no silêncio escuro a vida presa a trágicos deveres e chegaste ao dever de altos s...