Fragmento 2: Adiante

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"A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte de todos os medos é o medo do desconhecido."

H.P. Lovecraft

A espera em si era mais do que longa, queria chegar logo. Certificar-se que tudo estava bem. O ônibus seguiu até que bem pela Celso Garcia. O motorista via focos de conflitos pelas ruas laterais e gente correndo das lojas e tentava desviar deles. Sacolas estavam caídas pelo chão e até tiros foram ouvidos vindos de policiais militares da Ronda Tática. Munidos de escopetas e armas semiautomáticas, Julia viu em todos os detalhes quando um dele estourou a cabeça de um homem que veio para cima com sangue na boca, grunhindo. A polícia agora executava pessoas nas ruas. O motorista sentindo o perigo nem ousou parar no próximo ponto, seguiu reto pela contramão e conseguiu passar do Largo da Concórdia com relativa rapidez. Mas foi chegar à rua do Gasômetro que o trânsito parou de vez. Os passageiros mais exaltados queriam que ele seguisse de qualquer jeito, mas antes mesmo de tentar argumentar que estavam presos num trânsito de carros parados e batidos, uma viatura da polícia civil se chocou contra o ônibus do lado do motorista e dos passageiros que tentavam botar o veículo para andar. A Blazer preta do GARRA bateu com violência, mas os dois homens conseguiram sair do interior, um pouco tontos, mas quase intactos.

De escopetas em punho, batiam na lataria do ônibus vermelho e branco, mandando todo mundo descer e correr. Tinham que atravessar o viaduto Diário Popular. Havia um posto da polícia do outro lado e transporte seguro para fora das áreas de conflito.

Até o viaduto era uma longa corrida. Julia ajeitou as alças da mochila nas costas e desceu assim como pedido. Os policiais retiravam os feridos na batida, mas o motorista estava morto. Julia ainda teve tempo de ver o policial de escopeta arrebentar a cabeça do cadáver, até sobrar apenas uma massa ensanguentada e disforme no chão. Segurando o grito, Julia correu para longe, desviando dos carros parados, vendo que dezenas de outras pessoas tiveram a mesma ideia. Entrando na corrida, sem ver o que estava do lado ou o que tinha deixado para trás, ela corria.

A rua do Gasômetro é um dos principais eixos de circulação do centro de São Paulo. Mas por ser uma rua estreita, vivia com trânsito constante e naquele dia em especial era difícil circular. A polícia tinha criado barricadas nas ruas transversais para assegurar a principal e assim manter os revoltosos isolados. Passando na frente das lojas de ferramentas e máquinas industriais, as portas estavam todas abaixadas. Ninguém tinha ficado para ver os acontecimentos. Tiros, gritos, grunhidos, policiais feridos. Uma massa de desespero correndo para salvar a própria vida. Julia percebeu que chorava. De raiva, de dor nas panturrilhas por correr com uma mochila pesada nas costas, de ver sangue nas ruas e mortes. Havia corpos caídos perto das barricadas. Carros da polícia estavam abertos de qualquer jeito, havia cápsulas de balas para todo lado.

O tempo pareceu não passar, mas Julia já estava próximo ao viaduto, esquina com a rua das Figueiras, onde havia mais uma barricada. Tudo o que ela viu foi um homem abrir os braços e agarrá-la assim que virou à direita para subir o viaduto.

_ Me solta!

_ Calma! Polícia Militar!

Um policial com a farda de oficial médico da PM se aproximou dela e com uma pequena lanterna dirigiu o facho para seus olhos. Olhou os dois com atenção.

_ Solta, deixa ir. Tá limpa.

_ Atravessa o viaduto, anda!

Sem perguntar o que ele tinha feito ou o porquê, Julia continuou seu caminho. As pernas pareciam mais não responder quando ela começou a subir o viaduto, mas descobriu ter uma força que desconhecia e continuou. Várias outras pessoas seguiam com ela. Parando para recuperar o fôlego, Julia se apoiou na murada e puxou fundo o ar, mesmo sabendo que era poluído. Seu olhar foi atraído para o bloqueio que a polícia montou no final da rua do Gasômetro. O médico fez o mesmo que fez com ela com a lanterna em um senhor que parecia pálido e muito cansado. O resultado não foi o esperado, pois o policial ao lado sacou a arma e atirou contra a cabeça do homem sem hesitar. Um coro de gritos desesperados fez Julia voltar para a realidade e continuar correndo.

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