"Estar sozinho é treinarmo-nos para a morte."
Louis-Ferdinand Céline
O carro tinha morrido e Julia foi obrigada a parar. Já conseguia ver a grande mancha cinza e malcuidada que era São Paulo no horizonte. A cidade parecia pulsar no horizonte. Faltava pouco. Pelos seus cálculos, estava em algum lugar de Pirituba ou talvez em Caieiras, não sabia ao certo. Engatilhando o rifle, ela acendeu um cigarro com o acendedor do painel e desceu da Blazer, a blazer dele, de Leonardo. Admitia que precisava cuidar melhor do carro, ele vinha morrendo constantemente.
Rondou o veículo com calma, procurando problemas e quando viu que estava tudo calmo, tirou o galão de gasolina que tinha no porta-malas. Tivera a sorte de encontrar um caminhão-tanque da Petrobras semienterrado na lama de um rio alguns dias antes. Conseguira encher os quatro galões que carregava, sendo que estava despejando o conteúdo do segundo naquele momento. Grilos e cigarras se faziam ouvir. Ela olhava para os lados em busca de humanos e zumbis, mas via apenas cadáveres, bairros destruídos e carros desmontados pelas ruas. De onde estava tinha uma boa visão do vale abaixo e a estrada que serpenteava pelo bairro rumando na direção da Anhanguera. E no fundo, São Paulo. Desde que tinha deixado a cidade havia um ano e meio esteve evitando ir até lá.
Mas a vida era outra agora. Aquela moça assustada que levava uma vida monótona foi tirada de sua rotina por um apocalipse zumbi e se transformou na criatura amarga e silenciosa que era agora, sobrevivendo dentro de um carro. Talvez fosse para dar um novo sentido à sua vida que ela resolveu voltar à São Paulo.
Julia se pôs no caminho. Resolveu seguir por dentro do bairro, zigue-zagueando por ruas malcuidadas e volta e meia tendo que retornar, pois elas estavam intransitáveis. Escombros, cadáveres, carros virados. Morte para todos os lados. A vida sempre foi assim, não é? Cheia de morte para todos os lados. Mas é quando nos atinge que ela parece real, palpável.
Julia avançou devagar quando viu a alça de acesso da Anhanguera com a marginal Tietê se agigantar no para-brisas. De onde estava, era possível ver focos de incêndio ao longe. Barricadas militares pipocavam em todas as avenidas que descem acesso à marginal. Mas algo não estava certo. Em um prédio mais adiante, ela conseguia ver algo brilhando. De início achou que era alguma antena, mas depois percebeu que o brilho piscava. Não tinha energia elétrica em toda a grande São Paulo, então de onde vinha?
Desceu com o carro e entrou na marginal Tietê. Um ano e meio de abandono tinha feito crescer o mato nas calçadas e no asfalto. As margens do rio estava coberta de mato alto também. Num posto de gasolina à sua direita viu alguns dos zumbis zanzando, aproveitando a penumbra que a cobertura dava. As pupilas dos zumbis eram dilatadas, afinal eles são mortos reanimados e por isso a luz forte era uma vantagem.
Um tranco no carro e uma fumaça sob o capô fizeram seu carro parar no meio da marginal Tietê. Já estava quase na esquina da Raimundo Pereira de Magalhães, onde tinha um longo muro branco mal cuidado de uma escola estadual. Seu coração acelerou como não fazia há muito tempo. Irritada com a imobilidade, Julia desceu da Blazer e abriu o capô, sendo abraçada pela quente fumaça que vinha do motor. Não entendia muito de motores, mas aquilo certamente não era nada bom.
Os grunhidos típicos dos zumbis começaram a aumentar. Eles estavam ocultos na sombra de uma ponte que servia para o trem da CPTM que passava sobre o rio. Apesar de destruída, suas pilastras na marginal ainda cobriam parte da pista. Atrás de si, um grupinho saía da proteção da cobertura do posto, lentamente por causa do forte sol de meio dia que cobria a cidade. Julia os observou bem. Eram cidadãos comuns. Um dos zumbis era adolescente e carregava nas costas a mochila do governo do Estado. Estavam todos muito apodrecidos, pele escura, exalando um cheiro muito ruim. Dois que rodavam no lugar na penumbra nem tinham olhos. Estariam todos se decompondo lentamente?
Um tiro passou zunindo no seu ouvido esquerdo. Sentiu o sangue escorrer de sua têmpora e todo o mundo sumir por um instante. Os grunhidos pareciam mais altos. Julia foi ao chão. Mais disparos, pés arrastados, cheiro de morte e uma sombra negra e indefinida sobre sua cabeça...
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MUNDO Z
HorrorE se no meio de um apocalipse zumbi, você se encontrasse na maior capital do país? O que você faria?