Fragmento 14: Mortos 2

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"Respirar é uma doença!"

Charles Bukowski


Vários zumbis consumiam carne do mercado. O cheiro do sangue deve ter atiçado seus apetites. Vindo de costas, de olho no movimento, ele precisou atirar contra uns apressadinhos que vieram em sua direção. De olho em sua retaguarda, conseguiu se esquivar com sucesso de mais três que vinham do corredor paralelo e estourou suas cabeças. O que Leonardo não viu foi uma criança se aproximar por trás. Sua altura o enganou, pois ele nunca tinha pensado em crianças zumbis. Ela o agarrou com força e mordeu um pouco acima de sua cintura. Conseguiu chutar a menina para longe e ainda detonar outros dois que vinham na sua frente. Mas o estrago já estava feito.

Tentando raciocinar, ele puxou fundo o ar, secou o rosto das lágrimas e puxou Julia para cima, segurando-a gentilmente pelos ombros. Ela chorava compulsivamente e se agarrou a ele, num abraço sofrido, de dor.

_ Não chora... – afagava seus cabelos – Você vai ficar bem. É esperta, inteligente... Mas... olha pra mim. Você vai ter que poupar suas balas. Vou deixar com você todas as minhas armas. Use o meu colete. Também vou deixar minha insígnia... talvez abra algumas portas. Fala que é minha esposa, caso precise – hesitou ao ver que o choro não parava – Meu amor, a culpa é minha. Não chora.

_ Eu não vou conseguir sozinha, Leo...

_ Vai sim. Vai conseguir e sabe por quê? Você é muito melhor do que eu. E vai conseguir sobreviver.

_ Eu não quero te perder...

_ Nem eu, mas a gente sabe que isso é um caminho sem volta. Você ouviu tudo o que eu disse, você vai precisar racionar comida e balas. Não perca tempo atirando no corpo deles, atira na cabeça. Lembra quando você treinou com o fuzil?

_ ... lembro.

_ Usa a maior parte do tempo, vai por mim, você pode acertar dois ao mesmo tempo.

Julia sentia-se a pessoa mais sozinha do mundo. Havia agora uma distância de mil quilômetros entre eles dois. Uma distância que era para o bem dela, sabia disso, mas machucava seu coração.

Algumas horas após seu retorno, a febre começou. Leve de início, forte o suficiente para Julia o colocar num banho de imersão. Mas nada abaixava aquela febre. Leonardo foi ficando fraco. Começou a vomitar e nem água seu estômago aceitava mais. Tentou mantê-la longe, tentando protegê-la de alguma atitude insana, mas Julia não arredou pé e começou a cuidar de seu machucado, que não cicatrizava. Já era por volta da meia-noite, quando ele começou a tremer e a bater os dentes, sentindo calafrios. As convulsões começaram algumas horas depois. Nenhum analgésico ou antitérmico fazia sua pele esfriar. Ele se debatia na cama, aos delírios. Com a arma no colo, Julia permaneceu ao seu lado o tempo todo. Do lado de fora apenas frio e garoa, além da escuridão completa. A Blazer estava abastecida e pronta para uma saída caso fosse necessário.

Ele balbuciava coisas incompreensíveis, algumas coisas sobre a família, outra sobre Fernanda, sua ex-namorada, a loira da foto na porta do guarda-roupa. Pedia perdão pelas vidas que tirou, mesmo que fossem zumbis. Pediu perdão à família, por não ter ido até Sorocaba e resgatá-los. Disse que amava a Julia, perdido em delírios. Ela apenas chorava, sem nada poder fazer para impedir a transformação.

De manhã, por volta das cinco e meia, ele chamou seu nome.

_ Julia...

_ Estou aqui – enxugou as lágrimas.

_ Você vai ter... que atirar em mim...

_ Para, Leo.

_ É sério – sua voz já não tinha mais a convicção de antes – Sabe... é estranho. Eu sempre soube que morreria com um tiro. Mas nunca pensei que seria pra impedir que eu me transforme num monstro. Fiz muita merda, Ju... muita merda.

_ Não fala assim. Você é uma pessoa maravilhosa.

_ Eu pelo menos tive quatro últimos meses com você – a olhou profundamente Eu te amo, sabia?

Seus olhos pareceram distantes quando suas pupilas dilataram. Sua respiração ficou fraca e a força de sua mão, segurando a de Julia, desapareceu. Aquilo era mau sinal. Com o coração disparado, ela apertou o cabo da arma e se levantou devagar. Tinha que se lembrar de que ali na cama não era mais Leonardo e sim um monstro, que a mataria se tivesse a chance. Mas ver seu rosto e seus olhos tornava tudo ainda mais difícil. O olhar continuava perscrutando o vazio, boca entreaberta. Devagar, Julia deu alguns passos para trás, se afastando da cama, com a arma na mão, pronta para disparar, a pistola dele, sua arma de serviço. Então aconteceu. Ele piscou. Uma, duas, três vezes. Seu corpo se mexeu debilmente, ele grunhiu alguma coisa, enquanto Julia continuava a se afastar. Com um olhar vazio ele ergueu a cabeça e a observou. Não havia mais memória, não havia consciência alguma ali. Ele grunhiu de maneira ameaçadora e começou a se erguer sobre o cotovelo, querendo sair da cama. Um pouco desajeitado, o zumbi não conseguia se mexer direito, mas sua intenção era Julia. Com um aperto no coração, ela empunhou a arma e mirou.

_ Me perdoa... eu te amo.

E disparou. O estampido a desnorteou um instante, mas ele ficou imóvel, caído na cama. Ela o acertara na cabeça. Realmente, os treinamentos deram certo.

Após enrolá-lo com lençóis do quarto, Julia abriu uma cova do lado de fora do motel fundo o suficiente para não encorajar nenhum zumbi a tentar se alimentar dele. Cobriu o fundo com folhas secas e com dificuldade o transportou até lá e o enterrou. Por quê? Por que tirá-lo dela? Era tudo tão injusto.

Sozinha novamente no mundo, um mundo que ela não mais conhecia, dominado por criaturas que nada mais queria além de carne e sangue, Julia sabia que precisava seguir para um único lugar, São Paulo. Poderia morrer tentando, mas mataria quantos ela pudesse. Tinha recebido treinamento para matar e sobreviver e era isso que faria dali em diante.

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