Fragmento 4: Dor

113 26 0
                                    

Aquilo que não está morto pode jazer eternamente e com eras estranhas, até a morte pode morrer

H. P. Lovecraft

Sua alma estava dilacerada. Seu espírito parecia perder o vigor que a fez lutar tanto no dia anterior. A imagem do sangue brilhante e rubro no carpete ainda manchava sua visão. O som rouco e ameaçador que saía do quarto onde sua mãe morrera a assombraria para sempre. O que estava acontecendo? O mundo estava acabando?

Julia sentiu os cabelos atrapalhando os olhos. Descia a Avenida Imirim em direção à Santana e percebeu como as ruas estavam abandonadas. Nada de carros, nada de pessoas. Apenas papel, alguns sapatos deixados para trás, bem como sacolas e bolsas. Pegando uma presilha presa à alça da mochila, ela enrolou os cabelos despenteados e tentou pensar no que fazer. A quem recorrer se nem conseguia fazer uma ligação. Vendo um orelhão na esquina à frente, Julia se apressou em discar o número de casa, numa tentativa de encontrar uma explicação para o que vira. Mas antes mesmo de terminar a discagem, ela terminou a ligação. Tentou o 190 mais uma vez e a mensagem automática de sobrecarga no sistema foi alta e clara. Tentou o pai, tentou o amigo de infância que morava na mesma rua, tentou a vizinha, D. Dirce. Nada. As linhas telefônicas pareciam não funcionar. Não era possível que ninguém soubesse de nada. O governo estava por trás disso, ou não teria executado civis em plena luz do dia como vinha fazendo. Sentindo uma injeção de ânimo, Julia amarrou os tênis e começou a descer a rua em direção à Alfredo Pujol. Sabia que havia um quartel do Exército numa das esquinas. Além do mais, o Campo de Marte era alguns quarteirões abaixo.

Alguém tinha que saber de alguma coisa. Foi nesta rua que ela começou a ver as primeiras pessoas e uma certa confusão. A Alfredo Pujol estava bloqueada, com barricadas no quarteirão que abrigava o quartel e homens armados. Havia até um tanque no meio da rua, apontando na direção das pessoas. Com um megafone, um tenente dizia:

_ Há um centro de triagem montado no Campo de Marte. É necessário passar pelos médicos de lá para ser encaminhado aos ônibus de evacuação. Aqui é um posto de checagem, não fazemos triagem.

O pânico que Julia via no rosto das pessoas mostrava claramente que elas não entendiam o que era orientado. Acotovelavam-se, balbuciando o que achavam ser verdade, falando de alguma doença que assolava a cidade bem como outras cidades do país. Julia achava impressionante como as pessoas pouco ou não informadas, tinham respostas para um cenário onde ninguém sabia de nada. Vendo que não tinha opção, ela começou a caminhada até o tal centro de triagem. Mais pessoas surgiam, carregando bolsas, sacolas e malas. Foi então que uma luz de esperança surgiu quando Julia viu o velho amigo de infância e namorado na adolescência, Marcus.

Ele não era alto, mas seu cabelo liso de dar inveja era facilmente reconhecível. Ele andava sozinho com sua mochila camuflada nas costas, bebendo água de uma garrafa de meio litro.

_ Marcus!

Ele se virou, procurando a voz familiar e sorriu ao ver a amiga e vizinha. Os dois se abraçaram longamente com um alívio por ver um rosto conhecido.

_ O que tá acontecendo, Marcus?

_ Estão evacuando as pessoas que não estão doentes. Você não soube?

_ Não, não sei de nada.

_ Vamos...

Segurando em seu cotovelo, eles seguiram o grupo que ia aumentando que seguia na direção do Campo de Marte. Jipes do Exército vinham devagar, acompanhando as pessoas com atenção e era impossível ver seus rostos por trás das máscaras, o que aumentava a sensação de insegurança.

_ A mensagem foi em rede nacional e caminhões de madrugada diziam para pegar somente documentos e algumas roupas e se dirigir pro centro de triagem mais próximo.

MUNDO ZOnde histórias criam vida. Descubra agora