"Não há regra sem exceção."
Miguel de Cervantes
Julia passava os dias na cela da detenção. Tinha cama, banheiro e até uma televisão com um DVD. Nos canais abertos havia apenas o aviso de transmissão de emergência ativado. Fora isso, nada. À sua disposição tinha Minority Report, Alien e Madagascar. Ao menos servia para se distrair.
Uma moça chamada Sâmela sempre fazia a sua guarda. Um outro sujeito trazia comida e água três vezes ao dia. Mas sentia que eles não sabiam bem o que fazer com ela. Nem Julia sabia o que fazer. A ficha lentamente caía de que um ano se passou desde a morte do Leo, em que esteve sozinha durante todo esse tempo, lutando para sobreviver e tentar manter tudo o que era dele consigo. Mas se alguma maneira sentia que esse tempo teria que ficar para trás em algum momento.
Um dia de manhã o delegado Germano apareceu. Julia estava enrolada numa manta na cama, sentindo a cabeça pulsar de dor. Ele parou para observá-la, com as mãos entre as grades e com um gesto leve de cabeça, Sâmela entendeu que era para abrir a cela.
_ Vamos dar uma volta – disse ele.
Não sabia bem o que era, mas Germano passava uma autoridade e um frio que nunca sentira com ninguém antes. Foi por isso que sentiu o estômago afundar quando começou a segui-lo. Atrás dela, vinha sua segurança, estourando bolas de chiclete, paramentada como se estivesse em uma missão.
Os três foram até a pista do heliporto do prédio da Polícia Federal. Havia uma vista bem abrangente daquela parte da cidade, calma, em silêncio mortal. Julia automaticamente observou a direção de sua antiga casa no Imirim. Nunca conseguiria chegar lá. Se bem que não tinha nada para ver ali.
Acendendo um cigarro, Germano tragou profundamente, enquanto colocava seu óculos de sol preto, deixando com uma cara de menos amigos, menos do que sempre apresentava. Sâm ficou sentada nos degraus, tirando a sujeira embaixo das unhas com a ponta de um canivete. O sol banhava a cidade, quente e amigável.
_ Não consigo decidir o que fazer com você – ele falou.
_ Não é um pouco tarde para sentir remorso? – Julia estava acostumada a ficar na defensiva.
Germano soltou a fumaça devagar, observando a moça magra, com olheiras e braços cruzados que parecia não ter medo de ter que enfrentar sua ira. De fato, um comportamento desses apenas indicava uma coisa: ela enfrentara coisas piores.
_ Julia Padocci Vigário, estudante de Química, terceiro ano, bolsista do governo. Desaparecida desde a evacuação da cidade. Morava no Imirim com mãe e avó, irmã de Júlio Padocci Vigário, piloto da Aeronáutica – ele falava e a rodeava ao mesmo tempo – Eu tenho uma teoria do que aconteceu com você, mas prefiro que me conte.
_ Por quê?
_ Você tinha muita munição naquele carro, mocinha e lamento informar que vou ser obrigado a confiscá-las, pois até onde eu sei, você pode ter matado o policial e ficado com tudo o quer dele...
_ Ele morreu sim! – sua voz subiu uma nota com lágrimas pendentes nos olhos – Tive que meter uma bala na cabeça dele quando ele virou uma dessas... coisas! A gente já tava sem comida, ele tinha ido buscar mais... – sua voz falhou. Sâmela olhou para trás quando a ouviu gritar. Germano permanecia imóvel, indecifrável por trás dos óculos. Quase podia ouvir as engrenagens na sua cabeça rodando, pensando no que fazer.
_ Por que não saiu da cidade quando as evacuações começaram? – ele perguntou bem calmo.
_ O centro de triagem... uma confusão, eu não sabia o que fazer. Eu só corri. Foi quando explodiram a ponte e eu desmaiei. Acordei no apartamento do Leo e dali a gente fugiu pro interior – seu tom era de derrota.
Tragando ainda mais fundo seu cigarro, ele foi até a beirada do heliporto, pensando, como se a fumaça em seus pulmões fosse um estímulo. O erro já tinha sido cometido, ele trouxe a moça para dentro do prédio e a tratou. Era tarde demais para se arrepender. Sua história parecia sincera, aliás era mais coerente, ela não possuía aquele perfil de matadora sem escrúpulos. Somente o som das bolas de chiclete estourando podiam ser ouvidas.
Ele coçou a cabeça e se virou, dando uma última tragada e jogando no chão, esmagando com a sola do coturno.
_ Amanhã eu e a minha equipe vamos pegar alguns ônibus de viagem na Barra Funda. O governador quer evacuar o centro de triagem do Pacaembu para um lugar mais seguro na semana que vem. Você vai com eles.
_ O que? – ela se assustou.
_ Acha que vai ficar na cidade? Além desses zumbis malditos eu tenho milícias por toda essa merda, não vai ter lugar pra você aqui. Seu carro e suas armas ficam confiscadas, preciso deles aqui.
_ Não, por favor.
_ Sâm, leva de volta pra cela.
Sâmela percebeu a decepção palpável no ar que emanava de Julia. Pegou em seu braço e a colocou no caminho. Desceram escadas, atravessaram corredores, pessoas indo e vindo, e para Julia tudo parecia um filme. Ela não sabia de qual gênero era, mas certamente era de péssimo gosto. Entrou de forma automática na cela, ouvindo o fecho se trancar. Virou-se rapidamente e observou a moça que a trancava mais uma vez.
_ Me tira daqui, por favor.
Ela continuou em silêncio e de olhos baixos. Um erguer de sobrancelhas emblemático dizia tudo, algo como "não posso fazer nada". Guardando a chave nos bolsos, ela voltou a se posicionar no corredor, com a arma presa a um colete preto com o símbolo da Polícia Federal. Sâm nunca puxava papo. Ficava apenas em pé, os cabelos presos num rabo de cavalo meio bagunçado, mascando seu chiclete. De noite vinha um cara que nunca ligava para Julia na cela, pois sempre estava com fones no ouvido. O silêncio da madrugada a fazia ouvir as guitarras do Slayer, abafados pelas orelhas do homem.
Às vezes ela ouvia tiros. Eram distantes, mas certamente tiros. Conhecia bem aquela parte da cidade, imaginava como era difícil para manter as ruas livres de zumbis. Se no interior existiam mais milicianos do que zumbis, em São Paulo eles deviam estar em proporções iguais. Talvez fosse por isso que o contingente de agentes federais no prédio era baixo. Mesmo que ainda houvesse algum governo para tentar manter a ordem e a civilização, não mudava o fato de haver carniceiros sanguinários e zumbis lá fora.
No dia seguinte, ao acordar, não era Sâmela que fazia sua guarda. Na verdade, não havia ninguém no corredor. Tentando observar o corredor, viu apenas uma porta fechada. Sabia que a presença de um guarda a cada doze horas para vigiá-la era um excesso de preocupação, nunca conseguiria abrir aquela tranca, mas a completa ausência de gente no corredor também a perturbou. Sabia que eles pretendiam pegar os ônibus na Barra Funda, talvez isso tenha recrutado todo mundo.
Seu dia passou quente, à base de DVDs que já tinha visto e água. Levaram sua comida, mas ninguém respondeu sobre onde estavam os outros ou se já tinham chegado. De fato, levar comida era um aborrecimento para o cara que sempre chegava emburrado e lhe passava a comida por uma abertura mais larga nas grades.
Um barulho súbito a fez acordar do cochilo. Já era noite, tudo estava escuro, exceto pela luz fraca que vinha de alguma sala no corredor. Sentindo o coração bater descompassado, Julia sentou na cama, passou as mãos no rosto, esfregou os cabelos e se levantou, tentando dar uns passos para se acalmar. Foi então que ouviu a gritaria, tiros, barulho de rodas raspando no asfalto, palavras de ordem perdidas na escuridão. Uma janela pequena e com grades era sua visão para o mundo lá fora, mas ela dava para o rio e não para a avenida. Barulhos de holofotes se ligando e sua cela brilhou como se fosse dia. Explosões, vozerio, tiros e mais tiros sem parar.
_ Alguém abre essa cela, me tirem daqui! – ela sacudia as grades.
Ninguém a ouvia. Não havia ninguém ali.
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MUNDO Z
TerrorE se no meio de um apocalipse zumbi, você se encontrasse na maior capital do país? O que você faria?