Fragmento 3: Lar

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"O horror está além do alcance da psicologia."

Adorno

_Mãe! Vó!

Tremendo, sentindo o suor frio subindo pela coluna, Julia largou a mochila na cadeira perto da porta e seguiu até a cozinha. Respirou aliviada quando viu sua avó segurando uma travessa de comida recém-tirada do forno.

_ Julia, fia, que foi?

_ Como? - não entendeu a pergunta de início.

_ Não devia estar no trabalho?

_ A cidade está uma zona, vó, cadê a mãe?

_ Tomando um banho. Que tá acontecendo?

Voltando até a sala arrumada e com cheiro de lustra-móveis, Julia pegou o controle remoto e ligou a televisão. Tinham cortado a TV a cabo quando sua mãe Sílvia perdeu o emprego e, portanto a imagem não era das melhores. Era uma transmissão do plantão, que mostrava a situação em várias cidades do país, a maioria na área costeira. Reportes andavam junto dos comboios da polícia evitando o tiroteio. Trocando de canal, em todas as emissoras a exibição era de conflitos na rua, polícia atirando contra as pessoas e examinando os olhos.

_ Até agora não existem explicações para o pânico que tem tomado conta das grandes capitais do país. Equipes da Vigilância Sanitária montaram postos nas saídas das cidades, mas não deram declarações detalhadas sobre se é uma doença ou algum vazamento químico que pode ter causado a explosão de violência que colocou cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Cuiabá, Brasília, Belém, Natal, Recife e Salvador em quarentena federal. Há relatos de focos de violência também em cidades das regiões metropolitanas e do interior. Os indivíduos são examinados enquanto evacuam as regiões periféricas e centrais das cidades com a ajuda da polícia e das forças armadas e os governos dos estados pedem que as pessoas permaneçam em suas casas. São Paulo já estabeleceu um toque de recolher para as 18 horas, horários de Brasília - disse a jornalista - Está prevista para as 20 horas um pronunciamento da presidente em rede nacional de televisão e de rádio. Repetindo, não sabemos o que tem levado à explosão de violência. A polícia tem tentado controlar a situação de confronto, porém, a violência extrema dos manifestantes tem causado mortes e execuções pelos policiais na tentativa de se defender e defender os civis. Por favor, mantenham a calma e permaneçam em casa ou em lugar seguro.

Sentando automaticamente no sofá, Julia não sabia o que dizer. Sua avó ainda segurava a travessa na mão e pareceu não entender o que estava acontecendo. O Alzheimer estava tomando conta de sua mente e, portanto às vezes ela não entendia o que ouvia nem o que dizia.

_ Você quer almoçar, meu anjo?

Num ímpeto, Julia levantou do sofá com as chaves na mão. Foi até a garagem e trancou todas as fechaduras. Voltando para a sala, fechou a janela e as cortinas e trancou a porta. Subiu as escadas e entrou em seu quarto. Fechou a janela, baixou o vidro, enchendo o lugar de penumbra.

_ Filha?

Sua mãe estava no banheiro, terminando o banho e ouviu os passos apressados e o barulho das janelas.

_ Tudo bem aí, mãe?

_ O que faz em casa?

_ É uma longa história.

Fechando a janela do quarto da frente onde sua mãe e sua avó dormiam, ela voltou a descer as escadas e passou para o quintal. Se o que ela viu no centro tendia a se espalhar, a melhor maneira era se trancar em casa e esperar.

_ A gente tem comida em casa?

_ Temos, acabei de fazer comida, senta - sua avó deu um sorriso de incompreensão.

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