"Viver é negócio muito perigoso."
João Guimarães Rosa
Leonardo ficava de guarda nos muros até as quatro da manhã, olhando para a estrada e para a cidade abaixo com seu binóculo militar. Viu a confusão nas ruas da pequena e pacata cidade se tornar caos. Viu carros de polícia voando pelas estradas, pessoas fugindo e saqueando mercados, pessoas armadas com foices, facas, tudo o que pudesse protegê-las. Viu os zumbis entrando na escola onde tinham refugiados. Crianças, pais, professores e funcionários. Ele conseguiu programar as luzes dos muros para acender com o movimento. Assim, se algum zumbi se aproximasse, o holofote acenderia e seus olhos não tolerariam, por causa das pupilas dilatadas. Era uma medida de segurança, mas esperava não atrair mais pessoas para lá. Queria que pensassem que fosse um sistema automático. No entanto, alguém poderia pensar que ali seria um lugar seguro e tentar buscar refúgio. Eram muitos se...
O motel tinha um bom estoque de comida nos freezers, mas era muito difícil saber até quando a eletricidade duraria. Tinham bebida à vontade, que Julia não via com bons olhos. Nos primeiros dias, Leonardo parecia otimista, bem- disposto. Começou a ensiná-la como atirar com todas as armas que tinham, inclusive aquelas da delegacia. Ensinou técnicas de defesa pessoal com o que tivesse a mão, até cabos de vassoura. Era um pouco cansativo no início, visto que ela nunca teve treinamento, mas se tinha uma coisa da qual ela se orgulhava era de aprender rápido.
Tudo o que Leonardo aprendeu na academia, ele conseguiu ensiná-la com relativo sucesso nos primeiros dias. Conforme as semanas passavam, ela foi ficando mais rápida, mais ágil e melhor no gatilho. Ele temia não estar sempre por perto quando necessário. E ela teria que se defender sozinha nestas ocasiões, o que o enchia de preocupações.
Julia também começou a se preocupar após algumas semanas, quando viu os estoques de bebida do motel acabando. Especialmente a tequila e a vodca. Em cima do muro nas suas vigílias até de madrugada, ele bebia. E bebia muito. Ele colocava uma cadeira no muro perto do portão de saída por causa de uma árvore alta que o ocultava para quem viesse pela estrada. Bebia muito e comia pouco. Depois ir para seu quarto e caía na cama até duas da tarde. Levantava de ressaca, comia o que Julia deixava para ele na mesa do quarto e ia para o banho. Deixando-se consumir pela realidade, Leonardo ia aos poucos se prendendo às garrafas. Uma vez ou outra, ela ouvia tiros por sobre o muro. Eram eles, os zumbis, deixando as imediações da cidade, pois as luzes das ruas acendiam à noite.
Já estavam sitiados naquele motel de beira de estrada havia quatro meses. Julia acordou com a luz do dia vindo pelas janelas e levantou para tomar um banho. Foi um inverno difícil e as noites continuavam frias. Não sabia como Leonardo aguentava ficar sobre o muro até de madrugada. A bebida o esquentava. Pelo menos tinham comida e eletricidade. Parecia até que a vida não tinha mudado nada. Mas mudou e não havia perspectiva de voltar a ser o que era. Era difícil aceitar, quanto mais entender. Julia realmente se sentiu derrubada quando as linhas telefônicas caíram. Nem mesmo o Iphone de Leo funcionava mais. Talvez as baterias das torres de telefonia móvel tivessem acabado.
Eram onze horas da manhã. Julia passou uma parte da noite lendo de novo o livro que tinha em sua mochila, Estátuas de Sal. Falava sobre a destruição da cidade de São Paulo e sobre a busca de uma jovem pela verdade. Curioso. Parecia muito com a sua situação atual. Na cozinha industrial do motel, ela preparou a refeição de sempre. Pão, ovos e o resto do queijo da geladeira. Quatro meses consumindo e racionando, não duraria para sempre. Tinham comida para poucos dias agora. Fez café pensando em onde conseguiriam suprimentos e preparou uma bandeja para Leonardo, que deveria estar dormindo. Quando entrou em seu quarto, pura penumbra e cheiro de bebida. Com a claridade do dia entrando pela porta aberta, ela o viu jogado na cama, vestido, ainda com o fuzil preso ao seu colete do GOE, calçado. Simplesmente entrou e deitou. De novo. Deixando a bandeja na mesa, ela desatou seus coturnos, deixando-os juntos ao lado da cama.
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MUNDO Z
HorrorE se no meio de um apocalipse zumbi, você se encontrasse na maior capital do país? O que você faria?