Fragmento 20: Fúria

57 26 1
                                    


"Nada inspira mais coragem ao medroso do que o medo alheio."

Umberto Eco


Paulo fazia sua usual ronda a passos demorados pelo corredor do mezanino da estação Barra Funda, vigiando a entrada sul do complexo. Sentia o estômago roncar. De seu ponto de vista, via Sâm fazendo o mesmo na entrada norte, andando de cabeça baixa, imersa em seus pensamentos. Fazia meia hora que Germano, Luciano e Fábio tinham deixado o terminal dirigindo três ônibus de viagem de volta ao prédio da polícia federal. Eles voltariam em uma hora para levar mais três e assim ficariam a tarde toda se tudo desse certo. Havia pressa para esvaziar o centro de refugiados do Pacaembu. Além da milícia que se aproximava, um núcleo de zumbis bastante relevante estava nas imediações. Germano fazia voos constantes de helicóptero pela área, mapeando as regiões perigosas e mandando construir barricadas.

Os três não usariam a picape que continuava estacionada lá embaixo, para o caso de Sâm e Paulo precisarem de uma saída estratégica. Muita coisa podia dar errado numa missão assim, apesar de terem feito saídas muito calmas nas últimas duas semanas. Os zumbis estavam confinados em corredores sem luz pela cidade, enquanto o corredor de segurança criado por Germano permanecia praticamente inviolável. Havia barricadas nas ruas que impediam a ação tanto de zumbis quanto de milicianos. Estes últimos eram o principal problema. Eles dominavam a região alta da Pompeia e eram uma dor de cabeça constante enquanto tentavam forçar passagem para a zona norte da cidade. A única ponte funcional que conectava a região montanhosa da ZN com o resto de São Paulo era a ponte da Freguesia do Ó, fortemente guardada pela guarda nacional.

Um vento de chuva varreu as folhas secas do piso do mezanino onde Paulo fazia sua curta caminhada. Foi então que ele estacou no lugar e se abaixou.

_ Sâm!

Assustando-se com a chamada súbita pelo rádio, ela se virou e o viu abaixado, olhando com atenção por sobre a mureta da rampa barricada para alguma coisa na avenida lá embaixo. Automaticamente ela se abaixou também e apertou o botão do rádio, sentindo o coração acelerar.

_ O que foi?

_ A Fúria – ele disse baixo.

A Fúria era uma milícia perigosa formada por policiais militares, alguns da civil e até homens do Exército que tomaram o centro de sobreviventes da Vila Mariana e imediações, além de saquearem as delegacias para estarem bem armados. Eles limparam os túneis do metrô da linha verde e assim tinham uma grande mobilidade por boa parte da cidade, evitando os bolsões mal cheirosos de zumbis. Eles inclusive dominavam a Avenida Paulista, uma farpa dolorida no ego de Germano, justamente por ela fazer parte da linha verde. Com a ajuda de um grupo de técnicos da Eletropaulo, eles mantinham linhas de transmissão abastecendo de energia as regiões dominada. Germano pedira três vezes ao governador que desligasse a chave ou que mandasse explodir as torres que levavam energia à Fúria, mas ele negou, dizendo não querer deixar os sobreviventes no escuro. De fato, era crueldade deixar os aproximadamente seis mil paulistanos que viviam com os milicianos no escuro. Uma Blazer que era antigamente da polícia militar parou um pouco antes da entrada do terminal urbano, com o símbolo de um tridente pintado na lataria por sobre a tinta vermelha e cinza e do brasão da PM.

Sâm procurou abrigo nos banheiros perto da ala de embarque do terminal rodoviário. Fechou a porta com cuidado e a trancou e ficou de olho pela fresta no que acontecia lá fora. O cheiro podre no banheiro indicava a presença de corpos que lá se deterioravam.

MUNDO ZOnde histórias criam vida. Descubra agora