Marte; A-Zero, 83 de Primavera.
Eu e Merry havíamos passado todo o dia anterior arrumando o quarto, porta e as paredes do lado de fora e de dentro do nosso jeito. Decidimos passar o dia de hoje arrumando meu closet, ou melhor, tingindo-o por completo. Nunca pensei que poderia ser tão divertido tingir coisas. Acredito que era por eu fazer isso com Merry que era sempre engraçada e meio louca, divertida era uma outra característica para ela, combinava até com seu nome, que significava "feliz", "divertido" e afins.
No nosso quarto tinha comida, mas Merry explicou-me que as refeições principais eram feitas junto com todos os estudantes. Eu definitivamente não gostava da ideia de comer na frente de inúmeras pessoas, então estava evitando ao máximo, infelizmente teria que ir em algum momento.
Loren ainda não tinha aparecido e nem James, talvez ambos esperassem meu contato. Eu queria passar mais tempo com Merry, como uma adolescente normal, antes de enfrentar a vergonha patética na frente de James ou a fraternidade de Loren, quase paternal. Eu vestia um moletom, já tingindo de roxo, que cobria até o meio de minhas coxas, e um short rosa curtinho, que Merry havia me emprestado da sua coleção de roupas curtas. Impressionantemente eu não sentia frio algum, e como Merry já houvera dito, deveria fazer uns 100 graus negativos. Meu corpo estava mais acostumado com Marte do que minha mente.
Eu e Merry continuávamos dentro do closet, tingindo algumas peças e misturando as tintas roxo e rosa em outras. Até a forma de tingir em Marte era prática. Jogávamos — literalmente — o frasco com o tingimento no tecido e voilà, estava pronto para uso no exato momento após tingir, o mesmo acontecera com as paredes, a porta, os móveis e o chão do quarto. Não se encontrava mais a cor branca ou creme, era tudo uma mistura estranha de rosa e roxo. Apenas meu lençol era um roxo "imaculado", como Merry disse, e o lençol dela era rosa "imaculado".
Deixei meu cabelo solto, ora ou outra ele caía por meu rosto enquanto tingíamos mais um par de calças. Eu tinha que cortá-lo ou fazer algum penteado nele. Estava cansada de ver a mesma coisa todo dia quando me olhava no espelho. Eu não tinha franja, deixava meu cabelo na maioria das vezes partido ao meio, o que eu sabia lá no fundo que era horrível... Mas quem se importa? Eu já era considerada uma estranha mesmo.
Contudo em Marte eu queria ser diferente. Merry comentou que as tatuagens eram feitas rapidamente e sem dor alguma. Animei-me sobre, mas isso seria algo muito radical para mim. Merry votou a questionar, dizendo que as tatuagens poderiam sair quando eu quisesse com um 'líquido de remoção especial de tatuagem' — sem dor.
Tudo em Marte parecia perfeito demais. Todas as regras bem colocadas, leis que, segundo Merry, ninguém quebrava. Não havia sequer discriminação! Como um planeta sem discriminação poderia ser ruim? Eu sinceramente não queria saber. Eu era mente aberta para a sexualidade de qualquer um, nunca me importei com quem era gordo, magro, baixo, alto, com quem pegava quem. Afinal, todos viviam suas vidas como achassem correto. Se não machucasse, fisicamente, ninguém, que mal faria a mim e à sociedade? Não deveria haver nenhum, mas havia. Sempre havia o preconceito velado e isso era uma droga.
Felizmente eu vivia em um planeta inteiro sem qualquer tipo de preconceitos ou descriminações. Ou era isso que todos mostravam a mim.
No dia anterior, já no quarto com Merry, eu dormi tão rápido e tão pouco que agora deveria estar cansada, mas não estava. Queria explorar Marte, mas tinha receio, medo, vergonha, sei lá, uma série de sentimentos constrangedores.
James me disse, quando me "rastreou", que nascia um Renascido há cada um milhão de nascidos terráqueos e que eu era literalmente uma em um milhão... Sendo assim, quantos Renascidos foram rastreados nesse mês? Seria só eu? Se fosse isso, eu era a única com aparência "estranha" no planeta todo.
Soltei o ar (precisava dizer que era figurativamente e eu não tinha ar nenhum?). Merry pareceu perceber e me encarou, no mesmo instante que meu cabelo ficou para cima, como uma vassoura ao contrário.
— Que merda é esta?
Merry caiu na gargalhada e acenou, fazendo meu cabelo voltar ao lugar, só que agora mais embaraçado e embolado.
— Hilário! Eu deveria ter feito isso antes. — e riu mais e mais da minha cara de indignação fingida. — Você ficou tipo: "uou, o planeta está de cabeça para baixo?"
Eu queria rir também, mas não queria dar o braço a torcer a ela. Merry não tinha me falado sobre seu poder, e parecia esconder para me zoar, como agora. Ela deveria poder, sei lá, mexer nas coisas só com o olhar. Invejei um pouco, já que eu não fazia a mínima ideia sobre a minha habilidade e se existia mesmo.
— Sua... — apontei um dedo para Merry, sem conseguir deixar de sorrir.
— Pode dizer, Pequena Claire! — Merry ironizou o apelido que Loren havia me dado.
— Sua... — ela não me dera nem um segundo a mais para completar, pois fez o frasco que estava em minha mão levitar e consequentemente pingar em meu rosto, caindo novamente em minha mão.
Merry correu para fora do closet, como uma fugitiva condenada à morte. Eu fui atrás com o pequeno frasco em mãos e gritando que não era justo ela usar seus poderes, já que eu não sabia quais eram os meus. Encontrei Merry sentada tranquilamente no sofá, com suas largas pernas dobradas. Ela vestia um short rosa escuro desfiado (pelo visto essa moda não fora apenas na Terra) e uma camisa roxa de mangas (segundo ela, a cor da camisa era em minha homenagem por eu vestir o short dela).
— Merry... — não esperei um segundo a mais e joguei o restante do líquido do frasco em direção ao seu cabelo.
Merry sorriu e o líquido parou no ar, caindo no chão. Ela levantou-se do sofá correndo mais uma vez, sabendo que minha retaliação estava próxima.
— Não vale! É contra as regras da brincadeira usar seus poderes em quem não sabe quais são os seus!
— Querida Claire — Merry dizia enquanto corria para sua cama —, ninguém te disse que eu crio minhas próprias regras de brincadeira?
Foi nesse exato momento que alguém bateu à porta, e Merry fez o favor de abri-la com seus poderes, sem deixar de correr. Foi nesse momento também que eu caí, com a cara no chão, por ter tropeçado em meus pés, ao tentar, em vão, pular os dois degraus de uma vez, da sala ao quarto, sem nem conseguir ver o invasor, pois meu rosto continuou no chão por mais que o necessário.
Quando virei minha cabeça para ver o tal intruso, eu pude jurar que meu coração estava batendo e meu sangue esquentando — como minhas bochechas vermelhas, infelizmente.
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A Estranha
Science FictionClarice Jones. Esse era meu nome. Claire Blue. Esse tornou-se meu nome quando James Sky, um Rastreador, disse-me que eu era uma Renascida. Metade terráquea, metade marciana. Eu era uma Estranha em meu país, em Marte eu tornei-me ainda mais Estranha...