10 - Comum (?), parte 3

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No fim de alguns minutos eu estava diferente. Eu era outra pessoa. Meu cabelo estava curto, repicado e roxo. Eu tinha um piercing em meu nariz, alargadores 5mm em ambas as orelhas. A tatuagem da mulher que se assemelhava com um escorpião estava escondida em minhas costas, Wine havia feito mudanças no rosto dela, não parecia a mesma mulher do desenho principal, mas ainda havia detalhes que quem olhasse os dois desenhos saberia que era a mesma.

Decidi desenhar em meu braço direito uma caveira mexicana, cheia de cores, mas obviamente as cores principais eram o roxo e azul. Na minha coxa esquerda pedi para Wine desenhar coisas remetentes à Islândia. E ela fizera uma série de desenhos que pareciam esculturas de gelo.

Eu estava longe de casa e nunca mais voltaria para ela, mas em minha coxa, toda vez que eu olhasse, eu lembraria de meu lar, de onde eu nasci, embora tenha sofrido muito, eu tinha deixado lá minha mãe e eu sentia muita falta dela.

Agora eu já não me sentia nenhum pouco Clarice. Eu era totalmente Claire. Clarice era uma estranha, insegura, sem amigos, sem vida social; Claire era comum, segura de si, com amigos, com vida social.

Eu não era mais Clarice, mas todas as coisas boas que eu aprendi como Clarice eu levaria para Claire.

Claire ainda tinha medos, mas iria enfrentá-los. Um a um.

Quando me olhei no espelho da sala eu vestia nada mais que uma lingerie básica e meu colar gravitacional, pois tivera que tirar a calça e camisa para fazer as tatuagens. Eu me sentia tão bem e diferente de mim mesma. Era uma sensação nova. Totalmente de mudanças, e percebi que mudanças nem sempre eram algo ruim.

— Por que você não usa esse vestido? — Wine me entregou um vestido roxo com as costas nuas e acima dos joelhos. Parecia feito para mim.

— Acho que não vai combinar com meu sapato. — apontei para meu coturno roxo-escuro.

— Você faz combinar ou não.

Wine deveria ter uns 30 e tantos anos, em anos marcianos. Ela era delicada e agradável. Seu vestido vermelho era grudado ao corpo, e ela parecia não se importar em marcá-lo. Ela tinha autoestima, sem dúvidas. Já eu não tinha tanta assim.

Mesmo com minha autoestima um pouco baixa, decidi experimentar o vestido e calçar meu coturno.

No fim me senti bonita. Wine sabia o que falava. Eu dizia se combinava ou não. Eu fazia minha moda e a minha moda agora era um vestido com coturno.

Eu nunca fora uma garota de calçar saltos altos, e não mudaria isso agora. Eu estava feliz com o que eu via e assim eu ficaria.

— Wine, você é demais! Você já pensou em ser estilista também? — brinquei e ela riu.

— Querida, em Marte nós podemos ser o que quisermos.

Sorri de certa forma aliviada. Todos desse planeta deixavam claro que, independente do que eu escolhesse no meu futuro, serviria para alguém e seria considerado algo especial. Nunca, nada, seria inútil.

Eu tinha deixado meu celular no bolso da calça e Wine, sempre prestativa, pegou para mim, em uma arara de roupas e acessórios (de onde ela tinha tirado o vestido), uma mochila, colocando nela minhas roupas e celular.

— Seus amigos devem estar curiosos demais para vê-la. — Wine sorriu.

— Eu me sinto outra pessoa...

— Está feliz, Claire?

— Sim, eu finalmente me sinto... Comum.

— Querida, sinto lhe dizer, mas você nunca será comum.

Encarei Wine e ela sorriu, mas seu olhar estava apreensivo.

— Você acha que há algo de errado comigo?

— Ser única não te faz ter algo errado.

Olhei novamente para meu reflexo no espelho e meus olhos pareciam ainda mais visíveis. Estavam entre um tom de lilás e azul. Havia, definitivamente, algo de diferente em mim, mas eu não queria pensar sobre isso.

Pela primeira vez em minha vida, eu não era uma Estranha. Eu era, ao menos em aparência, comum.

Mas será que algum dia eu seria, tanto em aparência, quanto em personalidade, comum? Eu queria ser? Não, algumas vezes, como Wine havia dito, ser única, diferente dos demais, não me fazia ter ou ser algo errado, sobretudo, algumas vezes, ser comum vinha a calhar.

Eu me sentia Claire, não mais Estranha, Blue.

Claire Comum Blue.

Ser comum em Marte era ser diferente. Ser comum em Marte era ser único. Ser comum em Marte era ser você mesmo.

Eu era comum por ser diferente, única e ser eu mesma.

Sorri para Wine e tentei, dessa vez não em vão, relaxar, sem pensar no futuro e nos problemas que poderiam vir, se viriam.

— Wine, quero mais duas tatuagens. — avisei. — Em meus pulsos.

* * *

Quando Wine abriu a porta da sala, James e Merry continuavam sentados, assim que eu saí da sala, ambos arregalaram os olhos e se levantaram.

— Pequena Claire... — Merry brincou. — Você está outra pessoa.

Merry me abraçou fortemente e assim que me afastei dela, James segurou um de meus pulsos, vendo o desenho de um coração azul, Merry pegou o outro, vendo nesse, o desenho de um coração rosa.

— Eu sei que nós nos conhecemos há pouco tempo, mas... — comecei e logo me calei quando James e Merry estenderam seus pulsos para mim, mostrando o mesmo coração roxo.

Eles me amavam e talvez fosse precipitado dizer, mas eu os amava também e pretendia amá-los até o fim de minha vida.

Os sentimentos em Marte também não eram como na Terra, os dias, por serem mais longos, faziam com que parecesse que nós passávamos muito mais tempo com as pessoas. Eu não tinha meros dias ao lado de James e Merry, nós tínhamos muito mais.

Eu poderia ser comum, mas também me sentia especial, especial por ser amada, talvez amada pela primeira vez em toda minha vida.

— Que tal começarmos as aulas no dia 88 e não amanhã? — James sugeriu e eu sorri concordando.

Ser comum nunca foi tão especial.


***


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