01 - Morta, parte 2

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Gleda/Groa, ou seja qual fosse o nome daquela garota, era alta como uma modelo, magra como um poste e egocêntrica como só ela poderia ser. E eu já disse que ela me odiava? Então, ela me odiava. Não sei por que, mas ela simplesmente me odiava. Ela soltava piadinhas infames sobre mim, além de espalhar boatos com meu nome americano e de me perturbar dizendo que eu era totalmente estranha, tanto que nem meus pais me queriam em casa.

Como eu não respondi, ela berrou novamente, agora perto de mim:

— Clarice Estranha Jones! Está fingindo não me ouvir, de novo?

Eu não queria fingir, queria realmente não poder ouvi-la e hoje, para completar, eu tinha esquecido meu iPod em meu quarto. Levantei minha cabeça e me dei de encontro com o rosto de G-alguma-coisa a centímetros do meu. Embora eu não tenha dito nada, continuei calada esperando ela soltar seus insultos.

— Soube que amanhã é seu aniversário... — estremeci. Não podia ser! Como ela soube disso? Era para ser um segredo. — Quantos anos mesmo? — como eu continuei sem responder, ela abriu um sorriso tão grande e falso como o do Coringa. — Não importa, mas que tal comemorarmos?

— Comemorarmos? Por quê?

— HÁ! Parece que você ainda sabe falar...

— G...

— Gleda! — ela me cortou ao perceber que eu não lembrava seu nome, e sinceramente, nem fazia questão disso.

— Sim, Gleda, ouça, eu não sou estúpida, não somos amigas e nunca vamos ser, você está com esse convite bizarro só para aprontar alguma para cima de mim, então não, muito obrigada. — falei enquanto me levantava do banco e me afastava dela.

Gleda, que estava ajoelhada na minha frente, caiu de bunda no chão quando eu me levantei, mas rapidamente ela se recompôs e correu até mim com passos largos. Ela cravou suas unhas compridas em meu braço, mesmo com meu moletom grosso e camisa, com certeza ela estava deixando algumas marcas em mim e me fez virar para encará-la.

Afinal, qual era o problema dessa garota? Eu não fazia ideia. No dia anterior ela me odiava abertamente, agora ela estava tentando se aproximar de mim, fingindo não me odiar... Por quê?

— Você também tem que me ouvir, Estranha.

— Seja rápida! — puxei meu braço do aperto dela e fitei aqueles olhos azuis maquiavélicos.

— Pela primeira vez eu concordo com você, nós nunca seremos amigas, e eu não estou fazendo isso por você, mas a diretora me obrigou a tentar ser mais gentil e acolhedora com vermes inúteis como você.

— E se você não for? — nem sequer fiz questão de me estressar com a parte do "vermes inúteis".

— Ela abaixa minha nota. — admitiu.

— Acho que eu poderia insinuar para a diretora que você não é nem um pouco gentil, muito menos acolhedora.

— Você não faria isso, sua vaca! — Gleda apontou seu dedo comprido em meu rosto e eu sorri, finalmente tinha algo contra aquela vadia insuportável.

— Não, eu não faria, com uma condição...

— Qual? — Gleda só faltava rosnar de puro ódio.

— Seja gentil e acolhedora, você e suas amiguinhas.

— Me peça dinheiro, mas não me peça para eu ser gentil e acolhedora com você.

— Sendo assim, a diretora ficará feliz em saber o modo como você e suas amigas me tratam. — disse.

— Morra! — Gleda bufou e saiu pisando fundo para longe de mim. Acho que eu tinha vencido essa batalha.

Infelizmente a história de comemorar meu aniversário ainda estava entalada na minha garganta. Eu não queria comemorar nada, muito menos com Gleda e suas amigas, que sempre me perturbavam e me detestavam abertamente.

Não entendia o porquê de a diretora se importar com isso agora, eu já estava há alguns meses naquele colégio e, desde o primeiro dia, Gleda havia me tratado daquela forma. Parecia que ela podia ler meus pensamentos, pois, com certeza, neles, nós nunca conseguiríamos ser compatíveis, porque em aparência, infelizmente, nós e quase toda a população da Islândia éramos iguais.

Eu estudava nos turnos da manhã e tarde, e como era fim de tarde, minhas aulas já tinham acabado, eu estudava em dobro para compensar os anos que perdi, eu cursava algumas matérias atrasadas e adiantadas, para ver se assim eu conseguiria enfim cursar o ano certo.

Besteira! Para mim tudo isso era uma grande perda de tempo. Pra que eu precisava estudar tantas matérias aleatórias quando no fim eu nunca viria a usá-las a depender da carreira que eu escolhesse para mim no futuro? Eu ainda não fazia noção do que eu queria fazer no futuro, mas com certeza, não seria com nada relacionado à química, física ou matemática. Colégio para mim era só para adicionar opções à minha lista de "coisas que não quero para meu futuro".

O que eu queria mesmo era ser a personagem de um livro, a protagonista, por favor. E não me chamar Clarice Jones, não mesmo, gostaria de escolher meu nome.

Claire. Eu gostava do nome "Claire", era simples e ainda semelhante ao meu, contudo, eu o tinha escolhido e não minha mãe.

Se eu fosse a protagonista, todos saberiam que tudo pode dar errado para ela, mas no fim, ela sempre sai como vitoriosa. Protagonistas são sempre fortes, incríveis e invencíveis, enquanto eu, eu era apenas uma garota de quase dezesseis anos, sonhadora, solitária, antissocial e definitivamente estranha.

Eu não podia culpar completamente à G-alguma-coisa por me odiar. Eu podia até ter as mesmas características que ela, como ser loira, branca e ter olhos azuis, mas tirando nossa aparência não havia mais nada em comum. Ela era ainda por cima a melhor da turma, se você não contar que ela pagava pelos gabaritos, era claro.

Eu não tinha dinheiro para pagar por nada, então tinha que estudar, mas eu não era muito boa nisso também. Minhas notas iam de mal a pior e eu só continuava nesse colégio interno porque era um daqueles colégios públicos modelos, que tinham como slogan a mudança dos desajustados, como eu.

Subi rapidamente para meu quarto e me tranquei nele, deitando-me espaçosamente em minha cama.

Será que algum dia eu me sentiria fazer parte de algo? Eu nunca tive nem sequer um amigo. Todos tinham um amigo, menos eu. Eu já conversei com inúmeras pessoas, nos inúmeros colégios que frequentei, mas nunca passou de conversas esporádicas. Eu nunca estive nem perto de ter um namorado como todas as garotas. Inferno, eu nunca tinha dado um beijo na boca.

Em alguns colégios eu fora chamada de "lésbica estranha", mas eu sabia que eu não poderia ser lésbica, porque eu nunca havia me sentido atraída por mulheres, contudo, nem por homens. Eu poderia ser assexual. Talvez fosse esse meu problema: eu era assexual. Eu não tinha assunto com garotas e nem com garotos, minha "categoria" era outra, diferente das demais.

Fechei meus olhos e sonhei com o dia em que eu me sentiria aceita. Será que ser comum era melhor que ser uma estranha? Provavelmente sim. Eu nunca fora comum para saber.

A EstranhaOnde histórias criam vida. Descubra agora