Capítulo V - Elizabeth - "Meu próprio veneno"

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Assim que Brianna e eu entramos e nos sentamos nas cadeiras em frente á mesa da diretora, a mesma pigarreou e se endireitou na cadeira. Eu já tirara a mão do rosto, a diretora me conhecia bem demais para reconhecer fingimento. Enquanto ela passava o olho pelas anotações de uma folha á sua frente, observei Brianna remexer as mãos, nervosa, tentando ficar sentada da melhor forma possível. Revirei os olhos, estar ali era uma rotina para mim, eu não ligava de estar á vontade. Pude reparar em seus olhos ainda vermelhos, o que por algum motivo, fez crescer a raiva dentro de mim.
- Então... Brianna Collins e Elizabeth Taylor. – ela pareceu reler o papel – Elizabeth Taylor. - senti seu olhar sobre mim e o sustentei sem delongas – Senti sua falta aqui. Creio que quebrou seu recorde. Uma semana sem detenções. – ela disse ironicamente.
- Também senti sua falta, Vivian. – disse num sentido provocativo chamando-a pelo primeiro nome.
- Srta. Darkbloom. – ela me corrigiu sem esboçar reação e voltou seu olhar para Brianna – E... Brianna. Confusão na primeira semana de aula? – Brianna pareceu tremer. Eu já me acostumara á sobrancelha erguida da diretora e seu tom superior, porém era a primeira vez dela.
- E então, quanto vai ser? – disse impaciente, inclinando-me para frente – Duas semanas de detenção? Um mês? Dois anos? – o tom irônico em minha voz logo mostrou que eu estava cutucando onça com vara curta.
- Primeiro, quero ouvir a história. – Vivian me respondeu no mesmo tom.
Olhei para Brianna, esperando que começasse a falar, porém ela continuou quieta, o olhar fixo nos joelhos. Bufei.
- Ótimo, conto eu. – respirei fundo enquanto a diretora me observava fixamente, esperando que eu começasse – Eu vi a ponta do papel de carta que havia pego da mão de Brianna no primeiro dia de aula saindo de sua bolsa. Enquanto ela estava ocupada me abaixei e peguei. Então, eu comecei a ler para Melissa, que estava á minha frente e Brianna basicamente... Pulou em cima de mim. – disse essa parte com um sorriso torto – Claro que, com cada uma puxando de um lado, a carta se rasgou. Então, creio eu, Brianna foi para o banheiro feminino. Chorar. Como todas as horas. Fim. Emocionante, não? – disse ironicamente, deixando os olhos entreabertos.
- Era a única coisa que eu tinha restante do meu pai! A única! – Brianna elevou o tom de voz comigo, como se o que eu houvesse dito tivesse ferido-a por dentro, deixando toda a timidez e educação em frente á diretora de lado.
- Chorar não trará a maldita carta de volta, garota! – disse lentamente. Vi de relance Vivian nos encarando, parecendo ver até onde chegávamos para tentar descobrir algo – Você chora mais que meu primo de dois anos. Além do mais, sequer era uma lembrança de seu pai. Era sua! Você nunca entregou para ele. Não teve tempo, não é mesmo? Poderia escrever uma igualzinha neste momento e guardar. Daria na mesma.
Eu reparei que havia tocado na ferida, abrindo-a grotescamente.
- Pelo menos meu pai se importava comigo! Ele me amava! Posso dizer o mesmo do seu, Elizabeth? – ela chegou a gritar comigo, o ódio estampado nos olhos.
Não, ela não havia dito aquilo. Por um momento, fiquei atônita demais para falar algo, ainda processando as palavras da garota. Então me levantei abruptamente, quase derrubando a cadeira ao fazê-lo.
- Você não disse isso! – gritei com ela.
Vivian precisou intervir naquele momento para que eu basicamente não estapeasse Brianna ali mesmo.
- Srta. Taylor, quero que sente-se agora! – escutei sua voz autoritária se dirigir a mim, porém minha raiva impediu-me de obedecer.
- Ou será expulsa. – completou ela, vendo sua tentativa falhar.
Ela havia tocado em meu ponto fraco. Eu não ligava para suspensões, ou o que fosse, mas não poderia ser expulsa. Não conseguia nem imaginar a reação de minha mãe ao saber de tal notícia. Apesar de tudo, eu a amava. Não queria dar uma pisada tão fora quanto as que eu já dava diariamente. Dei uma última olhada para Brianna antes de sentar-me. "Você pediu. Meu jogo. Minhas regras." Voltei meu olhar á diretora, agora mais seriamente que antes, sem resquícios de ironia.
- E então? – falei mais grave do que pretendia.
- Bem, não haverá suspensões.
Eu e Brianna a olhamos como se ela tivesse ficado louca.
- Eu pensei em outra coisa. – ela disse por fim.
'Maravilha', pensei comigo. 'Seria pior. Eu teria de fazer serviço comunitário e ajudar velhinhos com cheiro de queijo velho. Ou quem sabe ajudar numa creche de crianças que se sentiam mais abandonadas do que eu. '
- Já que Brianna é nova por aqui, não sei se já sabe. Fazemos um teatro aqui no colégio. Todo ano. Sobre assuntos diferenciados. E os alunos fazem testes para os papéis, sendo os dos protagonistas os mais cogitados. Este ano, as protagonistas serão vocês.
Brianna franziu o cenho antes de perguntar o que já passava por minha mente.
- Se são os papéis mais cogitados... Por que está nos dando assim? Que espécie de punição é essa?
Vivian sorriu brevemente, o que me atingiu como um tapa na cara, me fazendo pensar em algo.
- Diretora... Qual é o assunto do teatro deste ano? – perguntei lentamente, temendo a resposta.
- Este ano, o teatro será sobre homossexualismo. – ela disse claramente se divertindo.
Minha boca entreabriu-se num perfeito 'o'.
- Que?! – Brianna e eu fizemos um inesperado coro.
Vivian precisou se esforçar bastante para nos calar. Quando ela finalmente conseguiu, voltei a levantar as questões daquela... Daquela... Idiotice? Loucura? Eu ainda precisava arranjar palavras para descrever.
- Não pode nos obrigar a aceitar tal coisa.
- Posso. Já estou fazendo isso. –ela disse calmamente se levantando e recolhendo papéis de sua mesa.
- Elizabeth tem razão. – Brianna me surpreendeu com suas palavras – Nossos pais estão cientes disso? Permitiram isso?
- Podem se surpreender, pois eles estão. – ela disse já acabando de recolher as coisas em sua mesa para sair – E permitiram. Eu expliquei a situação e os motivos. Eles acharam justo.
Novamente, não consegui que minha boca permanecesse fechada. Meus pais haviam... Permitido? Então me lembrei de algo.
- Dan! – disse rapidamente, como um código. Vivian me olhou estranhamente antes que eu terminasse de falar – Eu tenho um namorado. Daniel. Ele não vai gostar nadinha disso. – disse numa última esperança.
- Não faria diferença caso ele não gostasse. Ele não tem autoridade alguma na situação. – ela disse num sorriso – Porém contatamos ele também, caso queira saber. E ele não se importou, sendo apenas um teatro.
Cerrei o punho e coloquei-o sobre os lábios, olhando para a parede e indicando que Dan realmente se arrependeria daquela resposta depois.
- Mais alguma pergunta, queridas? – Vivian usou um tom carinhoso que me deixou tentada a socá-la.
- Se dissermos 'não'... O que acontece? – perguntei me controlando.
- Expulsão. – Vivian franziu o nariz de forma irritante.
- E... Tem algum... – engoli em seco, procurando as palavras – Beijo... Nessa 'coisa'?
- Ah, mas é claro. – ela disse encolhendo os ombros, logo antes do sinal do colégio tocar e me impedir de dizer muito mais.
Vivian saiu da sala, nos deixando sozinhas na diretoria. Eu virei-me para Brianna, sem saber o que dizer ou como me expressar. Sua expressão parecia querer me dar uma espécie de desafio, tal que eu não queria aceitar. Pensando em meus lábios juntos ao daquela garota cujo eu nem conseguia dividir meu oxigênio, só consegui fazer uma expressão de pura repulsa antes de sair.
A primeira coisa que pude reparar quando entrei em casa era no cheiro. Talvez a única pessoa que pudesse me tirar dos pensamentos daquele dia estivesse logo no cômodo ao lado. Larguei a bolsa na batente da porta e corri pelo corredor de luzes apagadas até a cozinha, onde surpreendi a mulher negra de avental com um abraço inesperado.
- Elizabeth! – a mulher riu, largando o pano que segurava sobre a bancada para retribuir meu abraço.
Eu não respondi de primeira, estava muito ocupada piscando repetidas vezes para conter meu estado de estranha alegria em vê-la.
- Eu estava precisando desse abraço. Não imagina o quanto. – disse rouca.
Ela afastou-me um pouco para olhar-me nos olhos, que brilhavam pela umidade neles contidas.
- Nem parece que me viu ontem de noite mesmo. – ela deu um meio sorriso – Dia difícil, querida? – perguntou docemente, alisando meus cabelos. Fiz um leve balançar de cabeça em afirmativa.
- Nem imagina,mã... Nora. – disse corrigindo rapidamente a palavra.
Olhei para o chão, constrangida. Nora trabalhava em casa desde que eu era bem pequena, e era quem normalmente ficava cuidando de mim. Ela se tornou tão indispensável para mim, que comecei a chamá-la de 'mãe' por certa época, mesmo que minha mãe desviasse os olhos todas as horas que eu fazia isto. Mas ela nunca despediu Nora, talvez soubesse o quanto significava para mim. Porém a mulher fez um acordo comigo, quando eu ainda estava lá pelos meus sete anos: eu não a chamaria nunca mais daquele jeito, por ela, era o que dizia, por isso aceitei. Eu obedecia a esse contrato até hoje.
- Minha mãe já chegou em casa? – disse rapidamente, tentando trocar o assunto.
- Chegou sim. – ela sorriu, indicando que não ligara para meu erro.
Virei-me para ir até o quarto, porém ela me interrompeu.
- Mas ela praticamente caiu na cama e dormiu, Eliza... – suspirei assim que ouvi, sentindo o tom escondido de pena em suas palavras.
- Tudo bem. Eu só vou... Dar boa noite. – disse rapidamente, olhando ligeiramente para o chão, e antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa, saí da cozinha para ir ao quarto de minha mãe.
Assim que entrei no quarto, vi minha mãe virada de lado, ainda de sapatos e a coberta tapando apenas seu braço. Suspirei, fechando brevemente os olhos. Ajoelhei-me e tirei os saltos de seus pés e abri a coberta para tapá-la depois. Levantei-me e beijei sua bochecha.
- Boa noite... – disse mais baixo do que pretendia e fui para a sala, onde Nora servia a mesa.
- Ahn, precisa de ajuda? – perguntei colocando as mãos nos bolsos.
- Não, não. Eu já arrumei. – ela sorriu e já ia se dirigindo para a cozinha quando eu a chamei.
- Nora! Nem pense em comer na cozinha. Vai se sentar comigo.
- Eliza, as regras da casa são que...
- Regra nova: Sem regras hoje. Pelo menos hoje. Por favor. – disse forçando uma expressão de tristeza, não que eu precisasse.
- E... Seu pai não viria jantar? - logo entendi porque ela havia posto dois lugares. Porém logo que viu minha expressão, percebi que se arrependera da pergunta.
Ela suspirou, vendo-se vencida.
- Tudo bem. Só hoje, Eliza. – ela alertou-me e sorriu de canto antes de sentar-se á mesa, no que logo me sentei também.
Foi o melhor sorriso do meu dia, aquele antes do jantar.
Na manhã seguinte, daria tudo por um sorriso daqueles de novo, porém a escrita grande e vermelha na porta do meu armário só me fez ter vontade de socá-lo. Abri-o rapidamente para pegar meus cadernos e fechei-o com tanta força que não me impressionaria se o tivesse arrancado. Um amontoado de pessoas rodeava um dos avisos no mural, o que me fez entender logo de cara que a lista dos personagens e o assunto do teatro haviam sido publicados. O que significava que meu nome e o de Brianna deviam estar bem no topo. E isso explicava também, as escritas em meu armário. "I kissed a girl and I like it."
- Realmente! – gritei para os estudantes que me olhavam e riam, ou forçavam para não fazê-lo – Realmente uma ótima piada! É uma música muito boa também! Deviam fazer stand-up!
Senti uma mão me segurar pelo ombro e me virei, a expressão de puro ódio, que continuou assim que vi Dan.
- Wow. Calma, esquentadinha. – disse ele num sorriso. Eu não sorri.
- Isso é culpa sua! Você devia ter negado! Era simples!
- Quero que se acalme e olhe pra mim, tudo bem? – ele me olhou nos olhos, em sua calmaria de sempre – Dizer 'não' não adiantaria nada. Eu não tinha poder sobre isso. E só causaria problemas. Era a melhor resposta.
Olhei para ele por um tempo, refletindo em suas palavras. Era óbvia sua razão, minha raiva apenas criara uma barreira para que eu não a visse.
- Eu sei, eu sei. Eu apenas... – suspirei – Desculpe pelo ataque. – juntei as sobrancelhas.
Ele riu antes de me beijar.
- Adoro seus ataques.
Mordi o lábio inferior num sorriso antes de olhar em direção á Brianna, que tentava recolher suas coisas o mais rápido possível para sair do rumo dos estudantes que também olhavam seu armário e riam.
- Parece que não sou a única com problemas por aqui. – disse tentando decifrar as escritas em vermelho na porta de seu armário.
"O gloss dela tinha gosto de cereja?" Realmente alguém precisava dar aulas para aqueles caras sobre como ofender alguém. Desviei os olhos quando Brianna olhou em minha direção, fingindo não ver. Então uma voz conhecida me chamou ao meu lado.
- Ah, Nate. Oi. – disse me virando.
Então vi no rosto de Nate uma expressão que não vira antes. Em vez dos olhos amarelados e hesitantes, havia neles agora um dourado de fúria. Ele segurou meu braço com força antes que eu processasse seu movimento.
- Deixe Brianna fora disso, Elizabeth! Onde está você, há problemas! E eu não a quero nisso! Deixe-a fora! – ele disse numa altura considerável, no que alguns alunos pararam para olhar. Após dizer isso, ele empurrou-me para trás com uma força que eu até então desconhecia vir dele. Eu só pude apoiar-me com as mãos no chão antes de cair sentada.
Então, Dan pareceu se recuperar do choque e foi para cima de Nate, no que me vi obrigada a levantar-me e puxar seu braço.
- Dan, não! Eu estou bem! – gritei em meio á suas palavras e ás de Nate, que graças a Deus também havia sido seguro por alguns colegas.
- Vai se arrepender disso, Nathanyel! – Dan disse por fim, antes de se desvencilhar de mim. Não gostei de seu tom. Ele normalmente cumpria o que dizia, e isso era o suficiente para saber em quantos problemas podia se meter.
- Dan, eu não... – tentei argumentar com ele, porém ele ignorou qualquer palavra vinda de mim a virou-se para ir para sua sala, antes mesmo das aulas começarem.
Só pude lançar um último olhar á Nate antes de ir também. "Onde eu estou, há problemas?" Talvez isso também pudesse ser aplicado á outra pessoa.

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