Capítulo XXV - Epílogo

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Passo minhas mãos sobre meu rosto pálido tentando acostumar meus ouvidos à música exageradamente alta que insistem em tocar nessa cafeteria. Minhas pálpebras parecem estar grudadas a duas pedras; uma das coisas que eu mais queria nesse momento é tirar esse terno e dormir tudo o que eu deixei nessas últimas duas noites, mas ficamos de encontra-la bem aqui.
Amber chega e se senta à mesa, jogando a bolsa vintage de lado. Ela me lança um olhar entusiasmado tentando me animar, mas eu apenas apoio meu queixo em minhas mãos. Ela inclina a cabeça.
- Ah, qual é- diz, cutucando meu braço- Cadê a Brianna que eu conheço?
- Ela precisa de cafeína. Muita cafeína.- digo. Minhas palavras estão entorpecidas pelo cansaço, é como se tivesse enchido a cara.
- Animação! Afinal, você finalmente conseguiu o que vem buscando, deixe-me fazer as contas... sua vida inteira? Anda, é motivo de comemoração, amanhã vai sair estampado na primeira página de todos os jornais: "Depois de quase vinte anos de investigações, Elizabeth Taylor foi considerada inocente". Ótimo título, não? E além disso, ela já deve estar chegando.
- Eu estou feliz. Olhe que sorriso sedutor- abro um sorriso torto e Amber ri. Ela é daqueles tipos de pessoa que sempre estão rindo de tudo, talvez por isso que viramos tão amigas ainda na faculdade.- E esse título é uma merda. E... ela já devia ter chegado.
Lembro-me perfeitamente de quando nos conhecemos. Eu tinha conseguido passar pouco tempo depois da morte de Elizabeth em direito. Na minha cabeça de adolescente dramática, eu deveria fazer psicologia, mas eu não podia viver e ver que a ideia que as pessoas têm da Eliza é uma assassina louca e transtornada, ou que Dan é o "salvador da pátria", o "herói que deu sua vida para tentar salvar a população da psicopata afetada". Não, eu tinha que mudar isso. Então eu entrei na faculdade focada nesse objetivo. Era a garota triste e sempre presa no próprio mundinho no canto da sala. Já Amber era a "raio de sol" que sempre fazia amizade com todo mundo. Eu consegui me abrir totalmente com ela, como se tivesse presente em todas as fases da minha vida; ela me ouvia sempre. E por fim, estamos aqui.
Amber tamborilou os dedos na mesa de madeira. Ela faz o tipo de pessoa vaidosa, bem cuidada e responsável. Suas unhas enormes estão sempre feitas; o cabelo sempre preso em um coque no alto da cabeça. Ela vai na dermatologista mensalmente, então nem preciso dizer que sua pele cor de bronze é lisa. Como bumbum de bebê. Adoro essa comparação.
[Meu celular toca e eu me atrapalho totalmente na hora de atender. Olho o visor e sorrio quando vejo quem é. Amber se debruça sobre a mesa para conseguir ouvir a conversa.
- Melissa!- berro, e algumas pessoas olham para mim pelo canto do olho- Diz que chegou, por favor!
- Ai, eu sei que você me ama, Brizadinha.- ela diz, e eu reviro os olhos- Eu estou a caminho. Caramba, faz mesmo muito tempo que não volto aqui pra Tenebris. Onde você falou que era mesmo?
- Nessa cafeteria nova, onde era aquele restaurante árabe horrível, do lado da lanchonete mexicana que a gente adora.- respondo.
- Ah, sei. Já, já estou aí.- ela diz. É difícil ouvir sua voz devido aos barulhos altos ao fundo- Ah, e fala pra Amber que eu estou com saudade... não, espera, se ela tiver com aquele mesmo coque de sempre, eu não estou com saudade. Falou? Valeu. Até mais.
Desligo o telefone e Amber sorri.
- Nunca entendo porque ela não gosta do penteado.- diz, passando as mãos pelo cabelo.
- É porque dá um ar muito responsável, sei lá.
- É ruim ser responsável?- ela ergue as sobrancelhas- Pelo menos eu não sou bêbada.
- Ei! Já partiu para o pessoal!- digo, com ironia- Eu não sou bêbada. Só bebo. Em... ocasiões especiais. E as madrinhas do seu casamento me adoraram!
Nós duas rimos, e eu pego o cardápio, dando uma breve olhada. Fico assim até o sininho da porta bater, e alguém entrar. Uma figura bem gótica. "O Borrão Preto", como Tyler costuma chama-la.
- Mel!- agito os braços, e ela vem em nossa direção, sorrindo.
- Cara! Cara! Deus, a quanto tempo! Uau, uau...- diz Melissa enquanto me abraça meio de lado. Ela não para de sorrir.
- Que saudade!- digo, olhando para ela. Amber se levanta e a cumprimenta,e por fim, nos sentamos.- Você quase nunca vem em Tenebris mais.
- Falou a pessoa que visita muito as amigas, não é, Brianna Collins Smith?- retruca Mel, e em seguida expõe um sorriso irônico.
Sempre sinto falta daquele sorriso. De um modo, geral, sempre sinto falta de todos os sorrisos. Da Melissa, com aqueles lábios pintados de cores escuras, destacando a branquidão de sua pele. Ela sempre ri de lado, o que já é notável por causa de uma pequena ruga do lado esquerdo de sua bochecha. Do da Amber, também; frequentemente ela usa um batom de cor marrom, o que combina com seu tom de pele. Sinto quando ela sai de férias do escritório, e eu tenho de passar dias sem arrancar uma gargalhada, sem poder lançar olhares cúmplices quando o senhor Harris briga conosco, ou simplesmente quando ela arreganha aqueles dentes perfeitamente enfileirados.
E como esquecer... dela? Eliza possuía um toque de cada coisa; é como se ela tivesse sido feita com uma pitada de mistério, outra de versatilidade, maldade, sagacidade, e ao mesmo tempo, coisas boas. É isso que fazia dela uma pessoa única, por isso que ela marcou tanto. Eu passei muito tempo chorando, me remoendo, pensando até como seguiria em frente. Mas eu não estava sozinha. E além disso, Elizabeth queria que eu passasse por cima, então eu o fiz. Sofri? Muito. Amadureci também. E ver Melissa me traz uma sensação de conforto, porque sua imagem faz com que todas as memórias boas invadam minha mente. Gosto de tê-la por perto.
- Ei, cara!- Mel chama um garçom que ronda por aqui, procurando um cliente para atender.- Número quinze por favor.
- Mas me diga...- Amber apoia a cabeça sobre a mão- Como vai Nova York?
- Ah, qual é, Amb!- digo, fingindo um olhar acusador para Melissa- Você sabe que não é exatamente isso que nós queremos saber...
- Não, gente!- ela se recosta na cadeira e coça a cabeça, o que sempre faz quando está constrangida.
- Fala logo sobre o Phillip! Eu estou morta aqui! Conta tudo!
- Tudo bem, tudo bem, eu falo.- ela começa, e olha em volta.- E antes que você me pergunte, não, nós não vamos nos casar, pelo menos não estamos pensando nisso. Até porque eu já tenho quase trinta e sete anos, estou ficando uma velhinha gagá. Enfim, ele é lindo demais e muito mais do que o meu amor. Como eu posso explicar... ah, vocês são casadas e entendem, eu não preciso ficar entrando nessas questões sentimentais porque me poupe os detalhes, né. Ele toca numa banda, e ele é o baterista e o vocalista, tipo os Eagles. E canta bem mesmo. Acredita que já permitiram que eu fizesse um solo numa das músicas?
- Sério? Nossa, famosinha! Cuidado, a soberba te dominará.- Amber comenta, rindo.
- Ah, mas não é lá essas coisas. Eles geralmente tocam em bares públicos, e são convidados para eventos. Não posso negar que a banda está realmente crescendo, e também não vou negar que eu canto super-bem, até porque eu não gosto de ficar mentindo, e vamos combinar, eu brilho demais.
Ela pisca algumas vezes, e paramos de falar para que o garçom colocasse os expressos na nossa mesa.
- Okay.- Melissa diz, misturando a bebida quente com um canudo- Agora vamos ao que interessa. E o meu casal preferido no mundo?
- Estava demorando a perguntar.- digo, passando o dedo sobre a borda do copo.- Alan e Grace nunca estiveram melhor, acho.
Desde que consegui resgatar os dois naquele manicômio infernal, eles têm sido como filhos pra mim e para Melissa. Nos compadecemos no momento em que os vimos, esqueléticos, marcados, tanto fisicamente quanto psicologicamente, um passado tão sofrido. Mas mesmo assim eles estavam sempre ali, juntos. Não importa o que acontecesse.
Recordo quase diariamente do dia em que Grace descobriu que Eliza havia partido. Acho que nunca a vi chorar tanto, foi como se tivesse perdido um ente querido.
- Ela ainda não conhece a pequena, não é Brianna?- pergunta Amber, erguendo as sobrancelhas para mim.
- Oh, não conhece. Não se preocupe, amanhã vamos lá na casa deles.
- Casa deles? Como assim?- Mel se debruça sobre a mesa, sorrindo.
- Sabe aquele prédio em frente ao meu apartamento? Pois é, eles ficaram com aquela ao lado...
Antes, Alan e Grace ficavam comigo. Eles ainda estavam perdidos, e mal sabiam o que fazer na vida para se sustentarem. Por um tempo, queriam conhecer aquilo tudo que haviam perdido, e foi aí que todos nós nos aproximamos tanto. Então, Alan decidiu que recomeçaria do zero, e que se tornaria grande- que até por um momento, eu cheguei a duvidar. Ele começou em pequenas empresas, no entanto, foram tantas propostas de emprego que vieram depois... isso tudo porque ele adora o que faz.
Depois de juntarem economias, conseguiram comprar uma casa bem legal, e Grace se engravidou, e faz quase um ano que a pequena Lindsey entrou em suas vidas.
Lindsey.
Sei bem como esse nome traz uma onda de melancolia para Grace. Fico irritada ao ver o grande amor que ela possui pela sua mãe, que sempre a tratou tão mal... mas é para que a pequenina traga apenas lembranças boas, de bons momentos, que de certa forma, foram poucos.
- Às vezes caminhamos ao entardecer- continuo, sorrindo de lado- Eu e Grace. Damos várias voltas pelo quarteirão, e de vez em quando ela até leva a pequena Lindsey!
- Deus!- Melissa arregala os olhos- E ela aguenta? Tipo, Grace é meio raquítica, não?
- Ela está melhorando nesse aspecto- Amber responde, rindo.- Está ficando mais fortinha.
- E você não vai junto?- Mel se direciona à ela, terminando com seu expresso. Seus olhos se movimentam de maneira irônica- Sua gorda de merda.
- Sua sedentária de extrema esquerda!- me junto à brincadeira. Amber revira os olhos e apalpa a barriga.
- Eei...- murmura- Nem estou tanto assim.
Melissa ri mais uma vez. A observando bem, penso que ela continua jovem. Talvez tirando as pequenas rugas (que convenhamos, toda mulher tem a essa altura), e a aparência exausta, ela bem que podia se passar pelos vinte novamente. Talvez dezenove, dezoito...
Quando tudo aconteceu.
De repente, um silêncio se abate sobre nós. Eu e Melissa trocamos olhares nublados, o que sempre acontece quando nosso cérebro para de funcionar para se voltar a um único assunto, a uma única pessoa que passou e se foi... de uma maneira tão insuperável.
Amber nos acompanha quando acontece, e até apresenta um semblante triste, como se ela tivesse realmente conhecido Elizabeth. Mas não conheceu. É difícil demais ficar se remoendo por anos, e pensando que você poderia ter feito algo a mais, mas não fez.
Ah, vamos lá Brianna, pare com esses dramas insuportáveis. Você passou sua vida inteira aborrecida com si própria, e todos já estão cansados de saber. Deixe de ser a patética de dezoito anos e vire a adulta de trinta e oito, vamos.
O sino da porta da cafeteria toca mais uma vez, e vejo uma figura esguia, alta e de cabelos levemente grisalhos entrar, com duas crianças atrás. Ele dá uma olhada em volta, e ao me ver, aponta para a nossa direção, onde as crianças vêm correndo. Em seguida, as segue.
- Tia Melissa!- Arthur salta em cima dela, que o abraça. Ele é meu filho mais novo e o mais agitado. Depois, minha filha a abraça mais "civilizadamente", como diria minha mãe.
- Nossa, como vocês cresceram!- diz a "titia", e os dois posam para ela. Claramente metidinhos.
Gosto assim.
- E aí, Melzinha!- Tyler a provoca, pondo as mãos nos bolsos, logo após beijar minha bochecha.
- Fala Ty-tyzinho!- ela responde com sarcasmo.
- Oi mamãe.- minha filha diz. De cara, percebo que sua expressão está murcha. Ela costuma ser autêntica, mas agora está triste.
- O que houve?- pergunto, colocando delicadamente sua franja loura atrás da orelha.
- A mãe do meu amigo da escola morreu hoje.- ela murmura, e aponta para a cabeça- Câncer.
- Oh, meu Deus!- Amber sussurra, e coloca mas mãos na boca- Puxa vida... eu a conhecia.
- E como está seu colega?- digo, e ela abaixa o olhar.
- Ele faltou hoje. Eu estou muito, muito triste.
Tyler passa a mão nos longos cabelos lisos da garota. Desde que ela nasceu, se tornou o "xodó do papai". Melissa acaricia a orelha de Arthur enquanto ele joga em seu vídeo-game portátil.
- Não se preocupe, criança.- Mel diz- Ele vai melhorar depois.
- Mas e se...- a garota me olha com tristeza.
Ela sempre foi do tipo caridosa e bondosa. Sempre sofreu pelos outros, e juntos com os outros. Esse menininho que perdeu a mãe para o tumor era um de seus amigos. Passo a unha de leve em seu queixo, tentando alcamá-la.
Deus, ela parece tanto...
- E se ele não superar?- pergunta ela.
Respiro fundo, e troco olhares com Melissa (que passa as mãos pelos cabelos curtos de Arthur), com Amber ( que agora está quase roendo as unhas) e com Tyler, que me olha com condolência.
- Ele vai ter que superar, Elizabeth.- respondo- De uma forma ou de outra, sempre tem.

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