Um barulho rápido e incessante foi o que me acordou. Abri meus olhos com dificuldade. Mesmo que eu estivesse deitada no chão, e apoiando a cabeça apenas numa pelúcia velha, ainda podia sentir que tinha sido a noite em que eu melhor dormira desde a morte de Nate. A consciência pesada não atrapalhava, visto que eu já havia me acostumado á ela.
A luz do sol de manhã batia em meu rosto pela pequena janela retangular na parede ao lado. Apoiei minhas mãos no chão e ergui meu corpo, tentando focar a visão e achar a fonte do barulho. Olhei para a porta de madeira no chão, que dava acesso ao interior da casa. Alguém parecia bater nela com força, tentando abri-la a todo custo, o que não fazia o menor sentido, visto que Melissa normalmente tinha a chave.
Levantei-me e aproximei-me com cautela, tentando não bater com a cabeça no teto. Cheguei perto da porta e agachei-me.
- Melissa? – sussurrei quando o barulho parou por alguns segundos – É você?
Não obtive respostas.
- Senhor, eu ouvi algo lá dentro! – ouvi uma voz vagamente familiar, porém com toda certeza não era Melissa.
A pessoa voltou a bater cada vez mais forte na porta, e eu não consegui fazer mais nada além de arrastar-me para trás, aterrorizada.
- Se você abrir, será melhor para todos! – a voz gritou para mim.
Meu coração parecia não caber mais em meu peito. Então, uma batida mais forte do que as outras abriu a porta violentamente, revelando um garoto familiar, trajando um uniforme da polícia. Ele me encarou. Não parecia muito mais velho do que eu; tinha os cabelos castanhos num corte baixo e os olhos de uma tonalidade tão escura que eu não consegui diferenciar sua íris da sua pupila.
Era o mesmo garoto que estava comigo no assento traseiro do carro policial. E agora, apontava uma arma diretamente para meu peito. Tentei afastar-me mais dele, mas a parede atrás de mim me impediu.
- Ela está aqui, senhor. – o garoto disse para alguém embaixo, sem tirar os olhos de mim. Não houve resposta – Tenho permissão para atirar?
A pergunta me deu calafrios.
- Espere, por favor. – supliquei, colocando meus braços em frente ao corpo como se fosse ajudar.
- Permissão concedida. – uma voz abaixo comunicou.
O garoto estreitou os olhos para mim e não hesitou em puxar o gatilho da arma. Minha última lembrança foi o meu grito e o de Melissa ecoando ao mesmo tempo.
Então, senti que alguém balançava meus braços desesperadamente, e finalmente consegui abrir os olhos. A primeira coisa que vi foram as íris escuras de Melissa cheias de pavor.
- Ah, meu Deus. Ah, meu Deus! – ela disse antes de me abraçar com aflição.
Eu estava confusa. Minha cabeça doía. Olhei rapidamente em volta, e constatei que continuava no sótão de Melissa, porém só havia eu e ela ali. Minha testa suava. Tinha sido... Um pesadelo. Eu estava acordada agora.
- Desde quando se tornou tão religiosa? – foi a primeira coisa que me veio á cabeça.
Melissa me soltou e riu, embora sua respiração continuasse pesada.
- E desde quando você grita á noite? – desta vez, seu sorriso desapareceu.
- Desde... – franzi a sobrancelha, pensando na resposta que acabou sendo óbvia – Desde a morte de Nate, acho. – olhei para ela – Seus pais me ouviram?
- Não. Eles já saíram faz tempo, não se preocupe. – ela deu um suspiro e então sorriu abertamente, mudando de assunto – Que tal começarmos o nosso maravilhoso dia?
Franzi as sobrancelhas para ela.
- Tudo bem, desculpe. – ela disse – Foi meio forçado. Mas vamos te tirar deste lugar abafado logo.
- Nisso eu tenho que concordar. – falei antes de segui-la para fora do sótão e ir até a cozinha.
Assim que chegamos ao local, Melissa foi á geladeira pegar algo e eu fiquei observando em volta, feliz em poder respirar melhor ali. Meu olhar parou num cookie de chocolate abandonado na bancada. Obviamente, ele não durou muito depois que o vi.
Melissa pegou leite, manteiga e algumas outras coisas que não vi e colocou na mesa. Então, veio até onde eu estava e ficou observando a bancada da cozinha por alguns demorados segundos.
- Eliza. – ela disse por fim.
- Sim? – respondi.
- Você comeu meu cookie? É isso mesmo que estou constatando? – ela olhou para mim – Eu te hospedo ilegalmente em casa e você come meu cookie em agradecimento?
- Hãm... – foi a coisa mais inteligente que pude dizer.
Então, ela deu indícios de que segurava para não rir, e quem acabou rindo fui eu. Mas Melissa ficou séria rapidamente.
- Não, sério. Você me deve um cookie. – ela disse e me puxou para a mesa da cozinha.
Tomar café da manhã com Melissa foi ao mesmo tempo surreal e maravilhoso. Fazia tempos que eu não me sentia mais normal. Mas fazia ainda mais tempo que eu não me sentia realmente feliz.
Eu queria esquecer que tinha um objetivo a cumprir naquele baile. Queria esquecer a morte de Nate. Queria esquecer Dan. Queria esquecer minha família. Queria esquecer Brianna. Queria até mesmo esquecer Grace, embora fosse egoísta demais de minha parte, e eu me recusasse a fazê-lo.
Só queria lembrar-me das piadas de Melissa, dela queimando a língua duas vezes seguidas no café quente, ou de minha dívida de um cookie para ela.
Infelizmente, não era exatamente eu quem decidia do que lembrar.
Assim que acabamos de comer, ajudei Melissa a tirar a mesa e a lavar louça, coisa que eu nunca havia a visto fazer. Ela parecia nervosa a todo momento. Mesmo quando estava esfregando os pratos, parecia fazê-lo com raiva. Em certo momento, um deles escorregou de sua mão e eu segurei-o rapidamente para que não caísse.
Melissa passou as costas da mão na testa e suspirou. Entreguei o prato de vidro em sua mão.
- Está tudo bem? – perguntei com receio.
- Claro. – ela deu um sorriso que eu sabia não ser real. Então, acabou de enxaguar o prato e entregou-me – Menos papo, mais trabalho.
Dei um sorriso de lado e voltei a secar as vasilhas. Eu sabia que Melissa escondia algo... Algum sentimento. E, por mais que não me agradasse, eu não era diferente. Talvez já desse para reparar, mas ir até aquele baile estava me consumindo.
Eu não estava com medo.
Eu estava apavorada.
Assim que acabamos de guardar a louça, eu segui Melissa até seu quarto, onde ela me pediu para sentar em sua cama e foi pegar algo dentro de uma gaveta. Depois de alguns segundos de busca, ela sentou-se do meu lado e me entregou uma... Carteira de identidade.
Uma carteira de identidade com um nome que não era meu.
E uma foto em que... Era eu, e não era ao mesmo tempo.
Que raios...!?
- Melissa... – comecei, mas não consegui continuar.
- Escute, têm dois foragidos nessa cidade. – Melissa falou, como se me contasse uma história de ninar – Você e o panaca. – dei um sorriso de lado com sua descrição e assenti – Esse baile é o momento perfeito para os policias colocarem as mãos em vocês. E, mesmo que eles sejam mais burros do que portas, acho que seriam suficientemente espertos para pedir uma identidade. Então...
- Essa é minha nova identidade... – completei.
- Exato. – Melissa disse – E essa foto – ela apontou – é a nova você.
Olhei mais atentamente para foto. Em alguns pontos, eu conseguia reparar que era uma foto minha, embora com dificuldade. Mas parecia que alguém havia passado um tempo no photoshoop editando meu rosto.
O meu cabelo estava preto e caía na altura de meus ombros, exatamente como ele realmente estava. Meu nariz e meus lábios pareciam mais finos, minha íris estava escura e eu tinha uma pequena pinta localizada abaixo do olho direito. Eu tinha um pequeno sorriso de lado, embora não parecesse de felicidade.
E, pelo visto, meu novo nome era Melanie Allen.
- É... – comecei a falar e parei.
- Estranho? – completou Melissa.
- Talvez. – olhei para ela – Onde arranjou isso? E tão rápido? – perguntei com apreensão.
- Eu tenho meus contatos. – ela sorriu e pegou a carteira da minha mão.
- Saquei. – disse mesmo não aprovando a ideia – E você vai conseguir me deixar... Assim?
- Querida, o que é que eu não consigo fazer? – ela se gabou.
- Você quer a lista em ordem alfabética ou cronológica? – dei um sorriso.
- Ah, cale a boca, Taylor. – ela ralhou comigo, embora risse – Sente-se nessa cadeira. – ela apontou a cadeira com rodinhas que era do computador, e eu obedeci – E não quero ouvir um pio.
Olhei para ela de canto de olho. Ela parecia realmente determinada, como eu nunca vira antes.
- Aqui. Pra você não me atrapalhar. – ela disse entregando-me uma revista de moda do mês.
A única moda do mês que eu tinha conhecimento era a da roupa do presídio ou a da roupa do hospício, então não reclamei.
Enquanto eu folheava a revista, sentia Melissa mexer em meu cabelo, mas não conseguia ver o que ela fazia, já que estava de costas para o espelho. Tinha que admitir que a ideia me assustava, mas eu confiava em Melissa. E eu realmente desejava que aquele momento parasse, e que a noite não chegasse.
Mas também não era eu quem decidia isso.
Após um longo período de espera, alguns puxões em meu cabelo e três revistas de moda folheadas, Melissa parou em um momento e ficou á minha frente, analisando atentamente cada centímetro do meu rosto. Então, ela ajeitou alguns fios no topo da minha cabeça e pareceu dar-se por satisfeita.
- Bom... Eu acho. – Melissa disse após um tempo, sem passar muita confiança.
- Posso olhar, então? – disse já virando a cadeira.
- Nope. – Melissa parou a cadeira e virou-a novamente – E chega de revista. – ela falou retirando a revista da minha mão e jogando na cama – Vamos consertar seu rosto, agora.
- Consertar? – reclamei.
- Exato. Se isso é possível, claro. – ela retrucou sorrindo.
Abri a boca para replicar, mas desisti da ideia.
Melissa pediu, ou melhor, mandou que eu mantivesse meu rosto virado para cima, e começou a passar realmente muita coisa em meu rosto. Eu sequer podia respirar com todo aquele pó no rosto. A cada vez que eu achava que estava acabando, Melissa conseguia tirar algo novo de sua bolsa de maquiagem.
Depois de um tempo, Melissa deu um longo suspiro e sorriu de lado para mim.
- Bem, acho que chegamos em algum lugar. – ela disse antes de virar a cadeira para o espelho.
Eu tive que erguer minha sobrancelha duas vezes para conseguir acreditar que era eu mesma naquele reflexo. Meu queixo tinha literalmente caído. Obviamente, eu confiava nas habilidades de Melissa, mas isso era... Uau!
Eu estava exatamente igual á foto da identidade, com exceção da maquiagem e do cabelo, que estava completamente preso para trás, onde havia sido trançado num penteado realmente bonito. Meus olhos se destacavam por causa do delineador e do lápis preto, e o tom azul da minha íris havia sido substituído pelo castanho escuro da lente que usava. E apesar de estar usando um batom vermelho escuro, ele me dava a sensação de que meus lábios realmente eram mais finos.
E o que mais me impressionava era que eu não me sentia estranha. Eu me sentia bem. Afinal, eu estava tão bonita; por que me sentiria mal?
- E então, o que acha?- Melissa finalmente perguntou.
- É... É. – eu estava realmente sem palavras – Uau, Melissa. – olhei para ela – Não se parece... Comigo.
- Faz tempo que não se parece consigo mesma. – ela me atingiu com suas palavras.
Tentei dizer algo, mas não soube o quê, e apenas voltei a fitar-me no espelho.
Melissa abriu seu armário e passou os dedos por algumas roupas, mas nenhuma pareceu agradá-la.
- Nenhuma dessas vai tapar seus machucados. – ela sussurrou mais para si mesmo do que para mim – Seria mais fácil vesti-la de múmia. – ela disse.
Dei um sorriso de canto enquanto ela abria a outra porta de seu armário. Melissa ficou um tempo observando alguma roupa que eu não conseguia ver, e então assentiu com a cabeça, como numa conversa mental.
- Eu acho que vai servir. – ela falou antes de retirar um vestido azul cristalino de seu armário.
O vestido tinha mangas que pareciam ir até o cotovelo, sua cor ia escurecendo á medida que chegava á base, e uma espécie de fita mais escura afinava a parte da cintura. Era muito bonito.
- É... Lindo, Melissa. É seu? – foi uma pergunta idiota, mas eu não imaginava ela usando um vestido daqueles.
- Eu usei em uma das peças da escola. – ela respondeu e me entregou o vestido.
- Não me lembro disso.
- É porque você não foi, Eliza. – ela falou normalmente, mas eu sabia que havia algum ressentimento ali.
Olhei para ela.
- Desculpe... – comecei.
- Não precisa se desculpar. – ela me interrompeu.
- Preciso sim. Eu era a "rainha-vadia". Até mesmo com você. – baixei o olhar – E o pior é que não posso consertar o que fiz.
- De fato, você não pode. – ela abriu uma caixa em cima da estante e tirou um brinco redondo e prata, entregando-me em seguida – Mas está consertando o agora.
Não consegui me expressar melhor do que num sorriso. Peguei os brincos e coloquei, e estava prestes a tirar minha blusa, quando Melissa me parou:
- Espera! Deixe que eu ajudo. Se você estragar esse cabelo... – ela não terminou a frase.
Demorou um pouco, mas conseguimos tirar minha roupa e colocar o vestido sem causar danos ao cabelo ou á maquiagem.
- Teria sido mais inteligente colocar o vestido antes, não? – perguntei.
- Uma pena que nenhuma de nós é inteligente, não? – Melissa replicou e eu ri.
Parei em frente ao espelho para ajeitar o vestido no corpo enquanto Melissa ia pegar um sapato no outro cômodo.
Apesar de acharmos que o tamanho não daria, a roupa de Melissa caiu perfeitamente em mim. E o tecido tapava completamente meus braços arranhados, enquanto a maquiagem de Melissa cuidava da pequena ferida na minha bochecha. E, apesar do meu pulso já ter curado quase que completamente, achamos melhor colocar uma pulseira prata que tapava minha pele, já que a manga do vestido não chegava até lá.
A parte da frente do vestido era mais aberta, mas eu já me acostumara a esses decotes, afinal. O tecido era leve e ia até meus pés, e acabava me lembrando do vestido que eu havia usado no teatro. Esse, pelo menos, não estava sujo de sangue.
Alguns minutos depois, Melissa retornou com um salto branco em mãos. Mordi meu lábio, pensando se meu tornozelo aguentaria aquilo.
Eu coloquei-o e me levantei. Até aí, deu tudo certo. Mas no momento em que dei um passo para frente, foi como repetir aquela queda, só que de vezes pior. A única coisa que me impediu de cair foi Melissa, que me segurou rapidamente.
- Não dá pra usar isso. – falei me sentando e retirando o calçado.
Melissa ficou pensativa por alguns segundos.
- Melissa... - disse após alguns segundos de silêncio – Você não tem nenhuma sandália?
Ela apenas fitou o chão como resposta.
- Tenho quase certeza de que minha mãe tem. Só um segundo. – ela disse e saiu do quarto.
Melissa voltou alguns minutos depois, com uma sandália branca simples nas mãos. Eu ri do modo que ela segurava o calçado, como se houvesse achado ouro. Eu coloquei a sandália nos pés e me levantei. Agora, eu poderia ao menos andar.
O relógio na cômoda de Melissa anunciava que já eram sete horas da noite. Era realmente impressionante como o tempo podia ser rápido quando não se queria.
Só faltava uma coisa para eu estar pronta.
Segurei a máscara preta com adornos pratas por um breve momento antes de suspirar e colocá-la sobre meus olhos.
Isso era tão nostálgico quanto perturbador.
Olhei para Melissa, que me fitava estática.
- Ah, esses fios louros de novo? – ela reclamou e eu tive de olhar no espelho para entender.
Os mesmos fios que tinham acabado ficando sem tintura, mesmo que fossem poucos, estavam destacados como uma única mecha loira em meio ao cabelo preto.
- Pensei que tinha cortado eles. – falei passando a mão nos fios.
- Não. Eu só tinha arrumado para que não aparecessem. – ela suspirou – Mas acho que vai ser melhor cortá-los, não?
- Não! – falei em um susto, e Melissa franziu o cenho – Eu... Eu quero que fiquem aí. Acho... Acho que vai me ajudar a lembrar que... Ainda sou eu. – Melissa parecia apenas mais confusa.
Não achei que fosse entender. Nem mesmo eu entendia. Eu só não queria... Perder a cabeça. De novo.
- Tudo bem... – ela disse lentamente – Só me deixe arrumá-los, então.
Eu assenti e Melissa colocou minha mecha loira por baixo do restante do cabelo.
- Eu não sei como te agradecer. – falei, com receio – Eu nunca... Fiz tanto por você quanto você me fez. E... Você me ajudou tanto, se arriscou tanto...
- Ah, Taylor. – Melissa me interrompeu e sorriu – Vamos parar com o momento meloso, por favor. Você é minha amiga. É o que a gente faz. – ela me disse e empurrou de leve meu ombro.
Eu apenas sorri, embora sentisse a estranha necessidade de contar para Melissa que ela era realmente importante para mim.
- Então, pronta? – ela perguntou, tirando-me de meus devaneios.
- Não. Nunca. – falei e ela sorriu de canto.
- Maravilha. Então, vamos. – completou antes de começar a andar.
O convite marcava o horário de início ás sete horas. Então, estávamos praticamente na hora marcada.
- Ah, espere aí! – Melissa parou quando estávamos na cozinha e voltou a passos apressados para seu quarto.
Todo o terror que eu sentia naquele momento se canalizou em minhas atitudes. Eu olhei rapidamente para o corredor, para constatar se Melissa estava vindo. Então, fiz uma das coisas mais estúpidas que já havia feito. Mas ir até aquela festa era mais aterrorizante do que parecia.
Eu fui até a gaveta da cozinha e peguei o primeiro objeto cortante que achei. No caso, uma pequena faca que parecia afiada. Então, coloquei-a em um dos bolsos "escondidos" que eu havia visto no vestido. Só esperava que não fosse necessário usá-la.
- Eliza? – virei-me rapidamente com a voz de Melissa – Tudo bem aí?
Eu assenti com a cabeça, apreensiva dela ter visto algo, mas nenhuma de nós mencionou nada.
- Ahn, okay então. – ela se aproximou de mim e me entregou minha identidade falsa – Você tinha esquecido. E... Isso é pra se você... Precisar... Ou quiser me ligar. Não sei. – ela me deu um telefone de um modelo mais antigo, que eu me lembrava ser dela fazia alguns anos.
- Obrigada. – falei antes de colocar os objetos em meus bolsos.
- Ah, então você descobriu os bolsos sozinha? – achei estranha sua pergunta, mas apenas sorri em resposta – Perfeito. Vamos festejar agora. – ela brincou e eu ri antes de sairmos da casa.
Apesar de eu ter que tomar cuidado para não andar mancando, poder estar fora de um lugar fechado sem o constante medo de ser vista era uma sensação muito boa. Melissa preferiu que fossemos com seu carro, mesmo que não fosse longe.
Eu podia estar delirando, mas ela parecia estar tão temerosa quanto eu. Fiquei me perguntando o porquê.
Chegamos em frente ao salão de festas da cidade mais rápido do que eu esperava. A música já tocava, embora o som ainda não estivesse tão alto. Diversas pessoas chegavam, e, como Melissa havia desconfiado, eram paradas na entrada do local para mostrar a identidade.
Eu fiquei um pouco sem reação ao pensar em como sair do carro. Mesmo que eu não quisesse, era uma despedida minha de Melissa.
Ao fim, tudo o que consegui fazer foi abraçá-la e sorrir, antes de abrir a porta do carro e colocar meus pés para fora. Porém, quando dei impulso para levantar da poltrona, senti a mão de Melissa puxar meu braço para baixo com força, e acabei sentando novamente.
Sequer tive tempo para uma reação, pois a garota segurou-me em um abraço apressado. Ela se afastou de mim, e seus olhos estavam lacrimejando.
- Ei... Ei... O que foi? – perguntei com preocupação.
- Eu vi o que pegou na cozinha. –Melissa falou e eu gelei. Mas ela não estava com raiva. Estava... Preocupada. Uma lágrima rápida desceu por seu rosto – Por que precisa daquilo?
- Melissa... – eu tentei me explicar, mas não soube o que dizer – É... Complicado.
Ela ficou quieta por alguns segundos, olhando para baixo. Então, abriu a bolsa que estava ao seu lado e tirou de lá um objeto preto que não reconheci. Quando ela apertou o botão que tinha ao lado, e eu vi a lâmina, entendi que era um canivete.
- A faca que pegou está sem corte. – ela sussurrou e deu um sorriso dolorido – Não mata nem um zumbi. – Melissa devia estar vendo muito The Walking Dead.
- Não pretendo encontrar zumbis no caminho. – retribuí seu sorriso e aceitei o canivete, guardando sua lâmina antes de colocá-lo no bolso e tirar a faca de lá.
- Pretende encontrar pior? – preferi não responder sua pergunta, mas meu silêncio não agradou Melissa – Me promete que vai voltar? – eu ouvi o desespero sair do fundo de sua garganta.
Abri a boca diversas vezes, tentando responder, mas tudo o que consegui foi segurar Melissa num abraço que eu desejava ser eterno.
- Eu prometo. – sussurrei imprudentemente e me afastei dela – Eu não ia te deixar por nada neste mundo. – disse secando uma lágrima em seu rosto e segurando para que as minhas não desabassem.
Melissa conseguiu sorrir com dificuldade. Ela abriu a boca para falar algo, mas acabou desistindo.
Então, eu saí do carro e andei a passos lentos até a entrada do grande local. Eu esperava poder cumprir pelo menos essa promessa.
Havia dois guardas de aparência bem hostil na entrada. Pude observa que os dois mantinham uma lista com algo escrito e uma foto minha e outra de Daniel. O guarda á direita pediu para ver minha identidade e eu entreguei a que Melissa fizera, que já estava á mão.
Ele observou a foto por alguns demorados instantes, antes de me devolvê-la. Eu já estava prestes a entrar, quando ele me parou novamente.
- Retire a máscara, senhorita. – ele ordenou e eu senti um frio invadir minha barriga.
Eu não sabia desta parte. E mesmo sabendo que eu devia estar irreconhecível, ainda era aterrorizante retirar a única coisa que cobria meu rosto. Rezei para que não notasse meus dedos trêmulos e tirei a máscara de meu rosto.
Cada segundo em que ele observava atentamente meu rosto foi contado mentalmente por mim, e eu já me sentia quente por baixo daquele vestido. Então, o guarda que me "atendia" olhou para o que estava ao lado e negou com a cabeça.
O que significava isso!? Eu já estava enlouquecendo, mais do que era possível. Mordi o interior da minha bochecha, tentando manter o controle.
- Muito obrigado, senhorita. Aproveite a festa. – o guarda anunciou e eu tive de segurar meu alívio apenas para mim.
Sorri para ele e coloquei minha máscara novamente, sentindo o gosto de sangue na boca. Eu provavelmente havia cortado o interior da minha bochecha. Ótimo começo!
Assim que entrei no local, minha primeira visão foram as pessoas. Digo, Tenebris inteira estaria ali. Mas, para o começo da festa, eu pensei que veria poucas pessoas. Como estava errada. Se andar com meu tornozelo dolorido já era difícil, esbarrando nos outros era ainda mais.
Quando consegui chegar a um local do salão que parecia mais vazio, pude olhar em volta. Para uma cidade que havia testemunhado um assassinato, Tenebris parecia realmente preocupada na decoração daquele lugar.
Havia diversos lustres pratas que rondavam um lustre dourado maior ao centro. Eles pareciam feitos de vidro, e chegavam a brilhar de tão bonitos. De um lado, as grandes janelas abertas davam uma visão do exterior, enquanto do outro, havia dois grandes espelhos com adornos dourados e uma majestosa águia da mesma tonalidade em cima.
Abaixo dos dois espelhos, tinha uma mesa enorme, com comes e bebes que acabei não prestando atenção. Ao fundo, havia um palco de madeira onde algumas bandas tocavam uma música agitada. Ali dentro, só era possível ouvir essa música, e nada mais. Isso se eu não acabasse ficando surda. Mas minha maior preocupação era em como achar Brianna no meio de todas aquelas pessoas. Isso acabou não sendo um problema, afinal.
Eu decidi arranjar um local mais afastado das caixas de som para procurar a garota. Enquanto andava, mantinha meus olhos alertas no amontoado de pessoas que estavam á direita, o que acabou tirando minha atenção de onde andava.
Eu mal havia andado dez passos, quando senti alguém esbarrar bruscamente em mim, e meu tornozelo queimou em protesto. Mas consegui me equilibrar e segurei o braço da pessoa á minha frente para que não caísse.
- Você não olha por onde anda? – a garota perguntou quando conseguiu se arranjar e olhou-me nos olhos.
Assim que notei suas íris verdes e seu cabelo castanho preso para trás, senti que meu coração dava uma parada brusca de alguns segundos. Era ela mesma? Estava tão... Linda.
- B... – segurei para não falar o nome de Brianna pelo susto, e tentei me recompor – Desculpe, eu estava... Procurando alguém.
Mas ela não pareceu me escutar. Seus olhos me observavam atentamente, o que me deixou temerosa. Eu tinha a garota á minha frente, que era exatamente o que queria. Mas não sabia o que fazer agora. Então, utilizei a tática que mais gostava, que era fugir.
Desvencilhei-me dela e comecei a andar a passos rápidos para frente, sem saber exatamente onde estava indo. Porém, senti a mão enluvada de Brianna me puxar para trás novamente.
- Espere... Eu te conheço? – ela perguntou, e eu não tinha resposta.
Estava confusa de repente. Os olhos cor de esmeralda da garota, seu toque leve em meu braço... Isso me hipnotizava, de alguma forma. Argh... Que raios eu estava pensando? Afastei-me um pouco dela.
- Não sei. Você me conhece? - perguntei e dei um sorriso de lado – Porque eu te conheço. – disse como um aviso, e sua confusão me deu tempo de andar para longe dela.
Eu ouvia meu sangue pulsando em meus ouvidos, mesmo com o som alto. Tinha que ter algum jeito de tirar Brianna dali. O problema é que eu não sabia ser muito sutil.
Enquanto eu andava esbarrando nas pessoas que estavam no centro do salão, consegui analisar uma porta ao fundo. Por que eu não tinha pensado nisso? O jeito mais fácil era sair pelos fundos. Se não houvesse nenhum guarda, é claro.
Com alguma dificuldade, consegui chegar perto da porta, que estava aberta. Não tinha ninguém vigiando, com exceção de um casal que eu acabei atrapalhando. Apenas pedi desculpas e voltei para dentro.
Realmente, Melissa estava certa. A polícia dali só podia ser idiota. Deixar uma porta aos fundos enquanto tem um suposto assassino á solta? Uau! Como não pensei nisso antes?
A visão de Brianna perto da mesa dos comes e bebes acabou atraindo minha atenção. Era minha chance. Comecei a andar para lá, quando um garoto de terno e máscara preta chegou perto de Brianna e eu parei abruptamente. Ela sorriu para ele e lhe deu um selinho.
Que caralhos!? Quanto tempo eu tinha dormido?
O estranho era que o garoto me era realmente familiar. Porém, a máscara estava me atrapalhando a ver quem era. Quando ele virou de frente para mim, recordei-me de quem era. O... "Cara do bar." Tyler, ou algo assim. O primo de Brianna.
Tipo, sério? Fiquei em choque por alguns segundos. Aquela garota tinha um fetiche por ficar com gente estranha. Quem sabe agora ela não pegava a mãe também?
O pior de tudo era que os dois juntos me davam uma sensação de embrulho no estômago. Eu só não sabia se era de raiva por Tyler estar me impedindo de executar meu plano, nojo, ou simplesmente... Alguma outra coisa.
Mas não era um cara que iria me atrapalhar. Eu estava cansada de gente me atrapalhando. E tirar alguém do caminho era a coisa mais fácil do mundo.
Um garçom passou ao meu lado e eu peguei uma taça com algo que nem analisei. Provavelmente vinho. Andei despreocupadamente até o "casal de pombinhos" e esbarrei propositalmente em Tyler, derramando o conteúdo da taça em sua roupa.
- Que porra...!? – ele se afastou de mim, que tentava fingir meu arrependimento – Vê se olha por onde anda, garota!
- Ah, meu Deus... Perdão. Eu... E-eu não te vi e... – gaguejei. Eu sorria por dentro.
- Tyler, sem confusão. – Brianna disse antes que o garoto falasse, embora me olhasse com desconfiança – Vá se limpar.
Ele lançou-me um olhar enraivecido antes de sair andando.
- Você, de novo? – Brianna perguntou, contrariada – Parece que sua única habilidade por aqui é esbarrar nas pessoas.
Eu sorri de lado.
- Você sabe pra que servem essas máscaras, Brianna? – perguntei com satisfação, vendo a garota franzir o cenho, em surpresa. Não disfarcei minha voz – É pra esconder o rosto das vadias. – soltei e me virei, andando em direção á porta.
Tinha que funcionar. E se eu conhecia um pouco de Brianna, iria funcionar.
Eu passei pela porta e pelo mesmo casal de namorados, mas não dei atenção. Só parei de andar quando cheguei aos fundos do salão. Era escuro demais, longe o suficiente da entrada, e a música abafava os sons.
Apesar da escuridão, pude distinguir Brianna se aproximando de mim, com cautela. Permaneci parada.
- É você, não é? – ela elevou a voz para que eu ouvisse.
- Depende de quem é "você". – respondi.
- Eliza? – ela perguntou, erguendo a mão para minha máscara.
Afastei-me dela rapidamente.
- O que está... Fazendo aqui? – ela questionou após um tempo.
- O hospício não era o melhor lugar do mundo. – falei com ironia – Mas talvez fosse o mais seguro. – eu sentia que não deveria estar ali. Ao mesmo tempo tão escondida e tão á mostra – Você tem que vir comigo.
Brianna hesitou por tempo demais, e eu acabei me desesperando sobre o que ela faria. Num impulso, empurrei a garota para parede e peguei o canivete em meu bolso mais rápido do que esperava. Minha lâmina foi parar no pescoço da garota.
- Se gritar, vai acabar visitando seu paizinho mais rápido do que espera. – sussurrei com a respiração pesada. Sentia o peito de Brianna subir e descer com rapidez. Sentia-me mal fazendo isso – Eu cansei de brincar. Você vem comigo por bem ou por mal.
Após alguns segundos de silêncio, tentei me controlar e afastei-me da garota, sentindo uma repentina tonteira. Era como se eu não suportasse mais ameaçar alguém.
- Desculpe. – foi tudo o que consegui dizer antes de guardar o canivete.
- E-eu vou. Com você. – Brianna falou e eu a olhei sem acreditar.
Apenas assenti e comecei a andar, dando a volta no salão por fora. Enquanto passávamos por algumas pessoas que estavam no exterior, apenas sussurrei para Brianna que agisse naturalmente, pois isso estava ficando difícil para mim.
Meu tornozelo começava a doer após alguns passos, e eu sentia tanto a base do canivete quanto o celular de Melissa tocarem minha perna sob o tecido. Era uma sensação estranha.
Já havíamos andado tanto que a música alta da festa parecia um sussurro agora. Eu tinha a sensação de ser observada em todos os momentos. Entre nós, o silêncio durou por todo o caminho. Brianna sequer fez perguntas quando já estávamos longe e eu me dei ao luxo de andar mancando pela dor.
Observei em volta até encontrar uma placa com os dizeres: "Avenida 13". A rua me lembrava algo... Só não sabia o quê. Eu devia estar paranóica, mas puxei Brianna para um dos becos do local. Estava vazio, com exceção de uma grande lixeira ao fundo. A rua também estava deserta. Era o lugar que eu precisava.
Olhei para Brianna, que parecia tão assustada quanto eu.
- Olha... – comecei – Eu quero fazer pra você a pergunta da minha vida. Sério. Se responder isso, eu sou a pessoa mais feliz do mundo. – falei – Você tem demência? – perguntei lentamente.
A garota a abriu a boca para falar algo, mas eu a interrompi:
- Não! Não, não,não! Não é possível que você pense normalmente! – meu tom de voz aumentava a cada palavra – Eu te pedi pra não fazer uma coisa! Uma coisa! E você vai e faz o quê? Exato! Exatamente o que eu havia pedido! Brilhante, Brianna! – simulei algumas palmas – Tem alguma coisa que diga que possa mudar o que eu penso? – voltei ao meu tom normal.
Brianna, porém, havia fixado os olhos em algo atrás de mim.
- Elizabeth! – ela gritou assustada.
Antes sequer que eu pudesse me virar, a garota empurrou seu peso contra o meu, e ambas caímos com um estrondo no chão. Tudo o que consegui ouvir foi o barulho de algo parecido com um tiro. Eu ouvia um zumbido incessante em minha cabeça, e minha visão estava completamente desfocada.
Talvez fosse por ter batido com a traseira da minha cabeça com força no chão. Sentia o gosto de sangue na boca novamente.
Consegui sentar-me com dificuldade, e minha primeira visão foi a de Brianna ao chão. Mas, diferente de mim, ela tinha batido com a parte da frente da cabeça. Alguma parte em seu rosto sangrava, mas eu não conseguia analisar qual.
Estava prestes a tentar tirar a máscara que cobria seu rosto quando senti algo puxando a parte de trás de meu cabelo. Porém, não era como se puxassem um fio. Era alguém que realmente me puxava pelo cabelo. Não sabia como o penteado de Melissa estava aguentando, porque eu não estava.
Eu fui obrigada a levantar, e quando a pressão em meu cabelo parou, meu corpo foi pressionado contra a parede fria com brutalidade, e meus olhos focaram no rosto de Daniel durante os segundos mais desesperadores da minha vida.
- Sentiu minha falta, querida? – ele perguntou com seu maravilhoso tom de filho da puta.
Não consegui responder de imediato. Daniel havia colocado seu braço em meu pescoço, e eu fui obrigada a mantê-lo afastado com minhas mãos, ao menos o suficiente para que eu não asfixiasse.
Seu rosto parecia mais magro, ele tinha olheiras embaixo dos olhos, e suas íris nunca tinham sido tão escuras antes. Sua aparência me assustava. Só não mais do que o revólver que ele segurava com a mão livre.
O que eu havia ouvido tinha sido realmente um tiro.
- Daniel... – eu só conseguia falar com dificuldade, soltando o ar pela boca como um sussurro – Você tem tempo de parar. Chega de arrependimentos... Por favor... De novo não.
Ele olhou-me nos olhos por alguns segundos, e eu só enxerguei sua frieza.
- Você mudou muito. – falou por fim – Fisicamente. Mentalmente. – ele sorriu de lado – Preferia você antes. – então, olhou para Brianna, inconsciente no chão – Foi para essa vadia que você contou? Sinceramente, eu esperava mais de você, Eliza.
Daniel ergueu o revólver, mas sua mira não estava em mim. Estava na cabeça de Brianna.
- Não! – gritei, em agonia, e ele apenas aumentou sua pressão contra meu pescoço. Porém, eu fiz o mesmo contra ele, embora não conseguisse afastá-lo completamente – Daniel! Por favor! Pelo amor de Deus, abaixa essa arma! – eu já berrava nesse momento.
Se ele queria o meu desespero, tinha-o agora. Aquela arma apontada para Brianna era a pior sensação do mundo. Era como se alguém me sufocasse por dentro, causando inesperadas lágrimas de ardor em meus olhos.
Tentei usar uma de minhas mãos para alcançar meu bolso, mas isso me obrigava a soltar o braço de Daniel, que acabava por me sufocar.
- Daniel, por favor! Eu faço qualquer coisa, só não machuque ela! – acabei soltando, numa última tentativa de pará-lo.
E acabou funcionando. Ele abaixou a arma lentamente, como se ainda estivesse tentando acreditar no que eu dissera.
- Repita. – foi a única palavra que disse ao se voltar para mim.
Eu podia ouvir as batidas do meu coração resfriando meu corpo.
- Eu disse... Repita. – ele pronunciou lentamente após um minuto de meu silêncio.
Sequer consegui engolir em seco.
- E-eu faço... Qualquer coisa... – tive de parar para respirar – Só não... M-machuque ela. – gaguejei por fim.
Eu já havia levado tapas no rosto. Diversas vezes. Mas nunca tinha sido com as costas da mão. E o peso do revólver que Daniel segurava só piorou a situação.
Manti minha cabeça baixa, segurando minha dor em meu corpo.
- Erga a cabeça. Você é mais forte que isso. – sua frase pareceu um estímulo por um momento. Mas era mais como uma ordem de quem eu deveria ser.
Eu não era forte. Nunca tinha sido. Sentia-me tão cansada. Só queria desistir. Pela primeira vez, a morte era uma opção acolhedora á mim.
Ergui a cabeça para Daniel com relutância.
- Eu não gosto de te machucar, querida. – ele era tão doente. Ninguém em Hollys era tão doente quanto Daniel era – Só que parece que não se lembra de mim. – infelizmente, eu lembrava.
Ele ergueu sua mão para meu rosto e eu retesei, pronta para que me batesse de novo. Ao invés disso, ele apenas passou seu polegar no meio de meu queixo. Eu quase podia sentir o metal frio da arma em minha pele, tão perto que ela estava agora.
Seu toque não parecia carinhoso. Apenas superior.
- Não se lembra de quando eu te tocava? Eu me lembro de como gostava. – eu tive náuseas com sua fala. Mas minha única arma era minha voz.
- Você me dá nojo. – minha voz tremia, assim como eu.
- Não parece tão corajosa no que diz. – seu sorriso foi frio.
Minha resposta perfeita foi cuspir em seu rosto. Como minha boca ainda sangrava, um pouco de sangue se misturava á minha saliva, e foi realmente gratificantes observar Daniel limpar aquilo de seu rosto.
- Olhe, eu acho que começamos com o pé esquerdo aqui... – ele começou.
Porém, ele tinha se distraido, seu braço perdendo um pouco da força, e eu consegui livrar uma de minhas mãos e pegar o canivete em meu bolso. Brianna não seria como Nate. Eu não ia deixar.
Eu só precisei de um segundo de total insanidade para libertar a lâmina prata e direcioná-la para o corpo de Daniel.
Só que não fui tão rápida.
Ele percebeu meu movimento antes mesmo que o fizesse, e tirou seu braço de meu pescoço para segurar meu pulso. Daniel não me prendia mais. Mas eu também não o fazia. Ainda me segurando, ele ergueu sua arma para mim.
Continuei encarando-o, mas não de queixo erguido. Eu estava amedrontada.
- Faça isso. – eu rangi os dentes – Atire. Atire na pessoa que amou um dia. É tudo o que eu mais quero, Daniel. – falei pausadamente.
Ele pareceu hesitar por um segundo. Mas sua hesitação se transformou em sarcasmo bem rápido.
- Loira, olhos azuis, bonita e magra. – ele listou – Muitas pessoas devem ter te "amado", Eliza.
Daniel conseguia me prender, mesmo quando não era fisicamente.
- Você não faria isso, faria? – ele perguntou, apontando para o canivete em minha mão. A pressão em meu pulso quase fazia com que eu o soltasse – É isso que quer?
Para meu choque, ele soltou meu pulso e abaixou a arma, e eu estava completamente livre para terminar o que havia começado. Mas eu havia... Travado. Sua pergunta martelava meu crânio.
Eu não queria. E ele sabia que eu não tinha coragem. Eu podia ter sido a pior vadia daquela cidade, mas eu não conseguia... Matar alguém. Era surreal demais.
- Vamos, Eliza. Você tem o controle. – ele provocou, e eu fechei meus olhos, sentindo-os queimar – Não consegue. – senti sua respiração mais perto de mim, mas continuei imóvel.
- Não precisa acabar assim. – murmurei, em desconsolo.
- Acabar? Acabar? – escutei sua risada – Somos foragidos, querida. Numa cidade onde as paredes sussurram. Isso nunca vai acabar. Mas... – senti seu toque em meu rosto, e apertei os olhos – Eu posso acabar com isso pra você. Agora mesmo.
- Seu... Doente... – balbuciei, sem conseguir acreditar.
- Não era exatamente eu que estava num hospício, Eliza.
Ele tinha razão. Por momentos, esse foi meu único pensamento. Ele estava certo. O problema não era ele ser um louco. O problema era ambos sermos assim.
E Tenebris estava pagando por nossos atos.
- Você tem razão. – minha frase o impressionou – Eu merecia estar lá. – dessa vez, fitei-o nos olhos, para o que definiria minha insanidade – Porque eu sou realmente louca.
Foi minha última frase antes de minha lâmina penetrar em sua carne. Soltei o canivete, que ficou cravado em seu estômago.
O ar saiu pela minha boca. Aonde eu tive de chegar? Ou talvez, aonde eu quis chegar?
Era doentia a sensação da lâmina no corpo de outro. Mas minha última sensação era arrependimento.
Daniel pareceu tão chocado quanto eu.
Ele afastou-se aos tropeços, e tirou a arma de seu corpo com um puxão. Não pareceu que conseguia gritar ou fazer qualquer coisa que não fosse manter sua expressão de choque. Pareceu tentar falar algo, mas eu não entendi. Havia muito sangue em suas roupas agora, que escorria pelo tecido por minha culpa.
Eu estava chocada demais. Absorta demais.
Aquilo era fatal.
Uma morte.
Pelas minhas mãos.
Daniel soltou o canivete no chão, pressionando o ferimento. Nada ia ajudá-lo, e ele percebeu isso tarde demais.
Quando suas tentativas de caminhar frustraram, ele caiu de joelhos no chão. Foi a cena mais dolorosa para mim. E ao mesmo tempo, a mais tranquilizante.
- Se eu vou queimar no inferno, vou levar você comigo. – a voz de Daniel estava rouca, mas continuava forte.
Seus últimos esforços foram usados para erguer a arma em minha direção. E atirar.
Embora eu soubesse que faria isso, não consegui me mover em momento algum. A única coisa que fiz foi fechar os olhos quando senti um leve empurrão para trás, e tudo se converteu em dor.
Coloquei mecanicamente minha mão sobre o buraco de bala em meu corpo, onde o sangue se esvaía á mesma intensidade que minha energia. Levar um tiro não foi tão doloroso quanto ver uma morte que eu mesma havia causado.
Mas não quer dizer que não doía. Todo meu corpo queimava. O desespero estava instalado em minha garganta, e quando abri os olhos, tudo parecia desfocado e estranhamente cinza. Agora eu entendia o significado de agonizar.
Daniel jazia no chão, sua arma caída ao seu lado. E uma poça de sangue ao seu redor.
Ao longe, o barulho abafado da música no baile, e a certeza de que estávamos num plano separado de todos os outros, e eles estavam inertes ao sangue que escorria por aquelas ruas agora.
A maior ironia era que eu me lembrava da Avenida 13. Eu tinha sonhado estar ali, onde Nate me dava um tiro. A única diferença era que o dono da bala era Daniel.
Todos meus movimentos eram automáticos. Eu sentia o sangue escorrendo da área das minhas costelas para meus pés. Involuntariamente, uma lágrima caiu em meu rosto. Morrer era meu desejo. Por que estava chorando?
- Elizabeth? – eu estava tão desligada do mundo ao redor, que a voz de Brianna puxou-me para a realidade.
A garota havia se erguido, e olhava a cena com choque. Ela tinha tirado a máscara, e eu podia ver sua testa sangrando. Mas ela estava bem. Era o que importava para mim. Quem ligava para um tiro se ela estava de pé?
- Você está... – tentei dizer, mas minhas palavras morreram. Então, apenas sorri.
- Eliza! – ela soltou quando finalmente viu o sangue que escorria por entre meus dedos.
Toda a energia de meu corpo se foi naquele momento, e fui obrigada a ajoelhar-me no chão.
Brianna se apressou e me segurou antes que eu caísse completamente. Ela colocou um de meus braços em seu ombro e utilizou todo seu esforço para que eu levantasse. Após duas tentativas, ela conseguiu algum resultado.
Infelizmente, eu não consegui ajudá-la com isso. Sentia-me fraca demais. Inútil demais.
Mesmo de pé, após dois passos extremamente lentos, a garota não conseguiu continuar com meu peso em seus ombros, e ambas caímos. Eu não tinha forças para apoiar-me, mas Brianna conseguiu me segurar num último momento, e colocou meu corpo em seu colo.
Eu suava frio, mas a sensação da pele de Brianna me aquecia.
- V-você... Está... Está tudo bem, o-okay? – ela balbuciava, em desespero.
A garota olhou para minha ferida e afastou minha mão com cuidado de lá. Embora eu houvesse sentido-me anestesiada até ali, agora a dor estava insuportável demais. Esse era meu ponto final.
Com esforço, tentei tirar a máscara de meus olhos, sem sucesso. Se eu ia morrer, queria que fosse como Elizabeth Taylor. Bastava de me esconder.
Brianna analisou minha tentativa e retirou a máscara de mim, deixando-a no chão. Tentei dar um meio sorriso, que acabou se transformando numa tentativa falha de puxar o ar para meus pulmões.
Senti um filete de um líquido quente escorrer de uma das minhas narinas, e Brianna começou a desesperar-se mais ainda. Ela puxou uma parte da base de seu vestido, rasgando uma tira do tecido, e limpou o sangue em meu rosto.
Eu não estava conseguindo respirar. Sentia uma súbita onda de náusea. Tentei virar meu rosto para o lado do chão, mas só consegui com a ajuda de Brianna, que segurou em meu ombro e virou-me de lado.
Vomitar diversas vezes seguidas sequer se comparava a vomitar sangue apenas uma vez. Era como se obrigasse algum órgão meu a sair de meu corpo. Após vomitar grande parte do que me mantinha viva, eu consegui ao menos respirar, mesmo que aceleradamente.
Brianna deitou-me na posição inicial, e eu pude ver a agonia em suas íris. Sua pele estava tão pálida que me assustava.
Ela tremia, mas limpou o que restava de sangue em meus lábios e então pressionou o pedaço de tecido no ferimento, tentando estancar o sangue. O único problema era que isso foi tão doloroso quanto o tiro em si. Desta vez, fui obrigada a gritar.
- Por favor... Por favor, Brianna... – supliquei, como se ela pudesse fazer algo.
Aquilo pareceu doer mais nela do que em mim.
- Você vai ficar bem... – ela me sussurrou, e havia real esperança em sua voz.
Eu sabia que ficaria bem. Mas não da maneira que Brianna esperava. A dor só pararia quando meu coração também parasse.
- Eu só preciso... B-buscar ajuda. – ela gaguejou.
- Não... – minha voz estava tão fraca que eu mesma não ouvia – Um telefone em meu bolso... – disse tentando encurtar a frase.
A garota procurou por meus bolsos até encontrar o celular de Melissa, que estava agora manchado de sangue. Brianna teve dificuldades ao teclar, de tanto que suas mãos tremiam. Ela colocou o celular no ouvido e esperou que atendessem, olhando em volta, embora fosse inútil. Não tinha ninguém naquela rua.
- Alô! – Brianna se sobressaltou – E-eu preciso de uma ambulância na avenida treze! – ela gritava – Eu preciso agora! – alguns segundos em que alguém ao outro lado disse algo – Escuta, seu corno, isso não é um trote! – as lágrimas de Brianna começavam a desabar, talvez de aflição – Por favor! – seu tom de raiva mudou para súplica – Minha amiga... Tomou um tiro. Eu não sei o que fazer... – ela sussurrou, e eu podia escutar seus soluços – Ela não pode morrer... Por favor... - alguns momentos de silêncio – Sim, obrigada... – ela falou antes de desligar e jogar o telefone no chão, com uma espécie de raiva misturada á angústia.
- Droga, Brianna... Eu precisava... Devolver esse telefone. – tentei distraí-la. Estava difícil falar sem pausas para puxar o ar.
Brianna não sorriu. Ela não conseguia parar de chorar, e suas lágrimas me davam uma sensação pior do que a bala em meu corpo. Eu não iria chorar, por mais que quisesse. Eu iria ser forte. Por Brianna.
- É-é isso, não é? Eu destruo... Tudo o que toco. – ela colocou as mãos sobre o rosto – É tudo minha culpa.
Tentei puxar um de seus braços para que me olhasse, e ela retirou as mãos do rosto.
- Não, Briza... – minha fala nunca tivera tanta certeza antes, mesmo com minha rouquidão – Você... Nunca faria mal á alguém. Você fez um favor... Á todos. Principalmente á mim. – parei por um momento, recuperando o fôlego gasto – Têm sido tão difícil... Dormir, Brianna. Agora eu só tenho que... Fechar meus olhos.
A garota negou com a cabeça, desolada.
- Não ouse fazer isso, Elizabeth. – ela falou com autoridade – Por favor. Apenas... Apenas respire. A ajuda está vindo. Você consegue... Já passou por tanto. Você consegue. Só fique... Fique comigo.
Eu assenti com dificuldade. Era impressionante o efeito que aqueles olhos podiam fazer sobre mim. De qualquer forma, a garota não parecia capaz de segurar suas lágrimas.
- Olha... – comecei a falar – Você mesma disse... É só um... Sonho ruim. Você vai acordar...
- E você? Você vai acordar? – ela perguntou e eu permaneci calada. Não podia mentir para ela. Eu sabia que não acordaria, a não ser que fosse num completo pesadelo – De que adianta acordar se não vai estar lá? – suas palavras geraram efeito sobre mim.
E dessa vez, eu sabia exatamente o que estava sentindo. Além da dor, claro.
- Eu pensei... Que estava começando a gostar de garotas. – falei após um momento de silêncio. Eu não conseguia responder suas perguntas, mas talvez conseguisse responder ás minhas – Mas não era... Isso. Era você. E você... Não é qualquer garota.
Brianna pareceu surpresa por alguns segundos. Eu mesma estava. Mas meus sentimentos não eram confusos com ela por perto. Eu só tinha uma direção, e essa direção era ela.
A garota não disse nada, apenas aproximou seu rosto do meu, e eu pude sentir uma de suas lágrimas cair em minha bochecha.
Então, seus lábios encaixaram-se perfeitamente nos meus. Ela era perfeita. Não perfeita para Nate. Não perfeita para qualquer um. Perfeita para mim.
Seu beijo foi a única coisa que realmente aliviou a dor que eu sentia.
Não foi como no teatro. Definitivamente não. Não era uma atuação forçada para o público. Era real. Tão real quanto meus sentimentos. E, pelo visto, os de Brianna também.
Eu toquei seu peito com a ponta dos dedos. E, mesmo já tendo sentido diversas sensações boas, não poderia descrever uma melhor do que essa. Escutar o coração de Brianna se acalmando. Era como uma tempestade cessando lentamente. E era também o melhor som que eu poderia ouvir.
Como tudo que é bom, acabou durando pouco. Eu não tinha fôlego o suficiente, e sabia que ainda havia sangue em minha boca. Não queria que Brianna fosse obrigada a sentir aquilo. Com a pouca força que tinha, empurrei seu rosto para trás, encerrando o beijo.
Eu tinha sido capaz de esconder meus sentimento por ela... Até de mim mesma. Eu conseguira mentir para mim mesma! Porque era... Insano demais. Mas um pouco de insanidade... É bom ás vezes."
- Obrigada... – eu sussurrei – Por... Isso. – estava realmente agradecida. Era o melhor momento da minha vida, mesmo que viesse após o pior.
Mas eu ainda tinha uma promessa de pé. E essa eu cumpriria.
- Tem uma... Garota... No hospício. Grace Blanks. – disse olhando-a nos olhos – Tire-a de lá. Por... Favor. Essa promessa... Você pode me fazer?
Brianna assentiu, ainda calada. Parecia chocada demais para falar algo.
- Eu prometo. – ela falou por fim.
Consegui sorrir.
- Perfeito. – foi basicamente a última palavra que tive forças para dizer.
As únicas coisas que realmente me mantinham de olhos abertos eram a promessa e Brianna. Este era meu máximo para cumprir a promessa. Eu confiava que a garota o faria.
Infelizmente, não estava cumprindo a promessa de Melissa. Queria ao menso pedir perdão por isso.
Porém, eu não queria deixar Brianna ali ainda. Depois de todas as atrocidades que eu vira no mundo, meu último desejo era não estar ali para protegê-la.
Eu queria ficar com Brianna, mas, em contrapartida, estava tão cansada. Estava exausta. Não era mais útil ali. Outras pessoas podiam protegê-la. Eu tinha que... Lidar com isso. Estava apenas sendo egoísta, prolongando o sofrimento dela.
O caminho mais fácil talvez fosse o certo.
Minhas pálpebras também não conseguiram mais se sustentar, e eu fui fechando meus olhos gradativamente.
- Eliza! Eliza, abra os olhos! – a voz de Brianna ficou fraca aos meus ouvidos – Eliza! – seu grito era como um sussurro – Por favor, Elizabeth! Não me deixe aqui! Eliza!
Eu ouço o som das ambulâncias... Longe. Longe demais. Ainda mais longe do que o som da voz de Brianna. Suas palavras, antes dirigidas tão perto, parecem agora ser gritadas de um penhasco.
Palavras inúteis para que eu acorde.
Então, tudo para.
Tudo o que sinto e ouço agora são meus batimentos... Lentos... Lentos... Tão lentos que não é difícil contá-los. Um... Dois... Três...
Sem a luz fraca das estrelas, sem a presença da lua, sem o brilho dos olho esverdeados de Brianna... Tudo está escuro.
"Deixar você?" Eu penso comigo mesma. "É a última coisa que eu quero."
No que eu sei serem meus últimos minutos, talvez segundos, penso em tudo o que me levou á... Tudo isso. Desde a chegada de Brianna até agora, escrevo todos os momentos e sensações em minha mente fraca.
Penso agora que a chegada da garota foi a melhor coisa que já me aconteceu. Estar morrendo também não é ruim em tais circunstâncias.
Mas ainda estou me remoendo de não ter falado a última coisa que eu realmente queria.
"Eu te amo."
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Faces Sob Máscaras
Fanfiction"Você nunca realmente conhece uma pessoa antes de descobrir, da pior maneira, o que sua máscara esconde." Elizabeth Taylor é a famosa "valentona" de Royal's College. Após a separação de seus pais, sua única regra é a de que nunca veriam suas lágrim...