Capítulo XV - Brianna - "Retirando a própria máscara"

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Estava deitada sobre um enorme gramado esverdeado. As geladas gotas de orvalho molhavam minhas costas. Havia muitas flores sobre o campo, da mais variada coloração, cheiro, tipo... Sentei-me, e o perfume adocicado e forte das rosas e tulipas invadiram minhas narinas.
Nuvens alaranjadas e turquesas riscavam o horizonte a oeste, o que já indicava fim de tarde. Respirei fundo e fechei os olhos, meus lábios se abrindo num sorriso terno. Minha mente parecia em paz, mesmo tendo a vaga impressão de que algo no fundo do meu peito estava agitado, como se eu devesse ficar amargurada por algum motivo que eu não me lembrava.
- Brianna. - uma voz distante me chamou, mas eu não soube distinguir se era masculina ou feminina.
Franzi a testa e me levantei. Olhei em volta, mas não havia ninguém no vale. Meu coração começou a martelar dentro do peito, algo me dizendo que não era apenas meu pensamento. Podia ouvir meus batimentos acelerados ali mesmo.
- Brianna. - a voz me chamou mais uma vez, agora mais perto. Era algo familiar. - Brianna!- gritou, como se estivesse impaciente para eu responder logo.
Minha respiração falhou, podia sentir o sangue fervendo dentro de mim, meu corpo pesando. Aos meus pés, as flores começaram a murchar, a grama começou a ficar seca e sem vida, e então todo o campo passou a ter essa cor morta, como um tapete bege sendo estendido por uma quadra verde. Ao mesmo tempo, as nuvens coloridas passaram de cores claras a um azul escuro e preto, como se o sol tivesse acabado de se pôr, mas numa velocidade relâmpago. Porém, não se via a lua nem o brilho prateado das estrelas.
- Brianna! - a voz parecia bem mais sólida agora. Senti um calor desagradável correr por todo meu corpo.
Me virei lentamente, respirando com dificuldade. O medo me dominava. Ao piscar algumas vezes, vi uma silhueta alta e robusta. Seu terno escuro dava um ar mais sério. Sua pele era acinzentada, como a de um defunto. Seus olhos, antes dourados, agora eram negros, como se ali estivesse apenas o corpo, mas sua alma já não estava ali mais.
- Nate? - minha voz soou baixa como um sussurro. Ele continuo ali, imóvel, olhando para o vazio - Nate! - gritei, e ele virou sua cabeça lentamente em minha direção, seus olhos sem vida me fitaram.
- Quando você vai parar de ser quem não é? - perguntou ele. Sua voz estava um pouco mais áspera do que o normal.
- D-do que você está falando?
- Você sabe. - depois, ele se curvou um pouco para frente, sua voz se transformando num sussurro - Me tire daqui.
Eu queria falar alguma coisa, mas as palavras se desmancharam em minha garganta, meu corpo parecia paralisado, minhas pernas feitas de gelatina. Ergui o braço para me apoiar em Nate, mas assim que meus dedos entraram em contato com seu ombro, sua imagem começou a se dissipar, e então eu caí no chão.
- Olha o que você me fez! Olha o que me fez! - ele gritava enquanto sua imagem se esvaía.
Juntei minhas forças para conseguir falar alguma coisa
- Você não é o Nate.
- Brianna!
- Você não é ele! Saia daqui! - gritei, entre soluços.
- Brianna! - a voz dele ficou um pouco mais aguda, e eu senti algo me balançando - Brianna, acorde!
Abri os olhos, e foi como tirar uma montanha de cima das minhas costas. Minha mãe estava à minha frente, seu semblante estava cansado. Demorei alguns segundos para ver que estava em minha cama, no meu quarto.
- É só um pesadelo, não é real! Tudo bem? - ela disse, me despertando totalmente de minha transe.
Em seguida minha mãe me envolveu com seus braços calorosos, mas eu estava espantada demais para conseguir chorar. Passei a mão na minha testa, e parecia que eu tinha acabado de tomar um banho de água fria. Soltei o ar pelo nariz e me afastei. O relógio da cômoda marcava cinco e dezenove da manhã. Meu despertador tocaria dali a uma hora.
- Vai voltar a dormir? - perguntou minha mãe, se levantando e arrumando seu roupão rosa - bebê. Meus olhos ficaram perdidos num canto escuro do quarto por um tempo.
- Não... Consigo. - murmurei, sentindo calafrios.
- Quer um chá ou algo assim? - perguntou ela.
- Eu quero ficar sozinha, por favor. - minha mãe me olhou com relutância - Por favor.
Ela franziu o cenho e depois saiu do quarto e fechou a porta, me deixando sozinha com meus pensamentos. Quando você vai parar de ser quem não é? Mordi o lábio inferior, sentindo minha cabeça tontear. Num movimento impulsivo, soquei a escrivaninha com tanta força que uma das caixinhas de enfeite que estavam em cima vibrou e caiu no chão. Só que eu esqueci de dar o soco com o meu braço que não tinha o pulso quebrado.
- Ai! - soltei um grito abafado, agarrando meu pulso enfaixado - Droga! Droga! Sua idiota!
Sentei-me na cama e pousei a mão sobre meu colo com desânimo. Por que eu ainda me assustava tanto com esses pesadelos? Eles estavam sendo tão frequentes desde que Nate morreu. Sempre acordava gritando e chorando desesperada. Mas parece que a cada vez fica pior.
Mas o que isso significa? O que ele queria dizer com eu ser alguém que, por dentro, não sou? Acho que parte de mim sabe. Ou pelo menos acho que eu acho.
Respirei fundo e deixei meu corpo cair para trás. Eu estava extremamente exausta, talvez porque não tenha dormido nada nesses últimos dias. E como consequência, Nick têm me levado para bares para que, de acordo com ela, "a bebida cicatrize a minha ferida interna". Porém eu sei perfeitamente bem que é só uma felicidade momentânea.
Meu mau humor também têm aumentado nesses últimos dias, e minha mãe não fica muito feliz de eu voltar de madrugada depois de uma noite inteira de garrafas de vodka e cervejas. Mas eu tenho lutado constantemente contra minha vontade de sempre encher a cara. E não é uma batalha fácil.
Fiquei um tempo ali deitada, tentando não dormir, até o relógio despertar. Levantei-me e fui até o banheiro, mas ao olhar no espelho senti meu corpo inteiro estremecer.
A pessoa que encarava meu reflexo no espelho não era eu. Ela tinha olheiras profundas e escuras, o cabelo alto e emaranhado com um ninho de pássaro. Fiz alguns movimentos aleatórios só para me certificar de que estava mesmo naquela condição. Baixei os olhos, me sentindo entristecida. Eu havia baixado tanto o nível assim? A morte de Nate havia me causado tanto prejuízo? "Você não sabe o que é dor" minhas palavras vieram à tona naquele momento. E se eu mesma não soubesse? Talvez tudo o que eu estava passando era fichinha perto dos problemas das outras pessoas.
Respirei fundo e tentei me ajeitar para ir à escola, não queria ficar parecendo aquelas mendigas que passava por perto e as pessoas se assustavam e davam todo o seu dinheiro desesperadamente, pensando que uma hora ou outra eu ia sacar uma arma e começar a aniquilar todos.
Minha mãe me esperava dentro do carro, e eu desabei no banco do motorista. Pude sentir sua respiração vacilar ao me olhar, como se ela sofresse internamente ao me ver naquelas condições.
- Que horas você voltou para casa ontem? - perguntou ela ao parar no sinal vermelho.
- Antes da meia noite. - respondi, e minha mãe soltou um grunhido como se dissesse "ah claro, com certeza voltou. Acredito muito" - Eu juro! Não estava muito a fim de beber, então deixei todos lá e vim embora. Olha só, nem estou de ressaca.
- Brianna, lembra daquela vez que você brigou com aquela garota na escola e eu disse que era pra soltar essa franga? Então, não era nesse sentido, tá? Eu quis dizer no sentido bom, sem isso de bebidas e...
- Mãe! Tá tudo bem. É sério, não precisa se preocupar.
- Mas você tem mudado tanto! Desde que começou a andar com aquela Nice...
- Nick.
- Nick. Desde que isso começou, você mudou. Olha, eu não me agrado muito dela. Não estou te proibindo nem nada, mas eu só quero que você...
Paramos em frente ao portão de ferro do colégio. Minha mãe suspirou e eu saí do carro, mas antes de fechar a porta ela completou.
- Juízo, hem.
E então eu entrei na escola. Fui caminhando até meu armário e passei os dedos pela faixa em meu pulso - sem perceber, eu sempre fazia aquilo quando ficava nervosa. Ao pegar meus livros, porém algo me chamou a atenção.
Parados conversando perto da escadaria, estava um grupo de jovens comuns. Eles davam risadas e conversavam animadamente, mas algo insistia em atrair o meu olhar. Assim que eles se dispersaram, vi uma figura parada atrás de uma garota de cabelos acobreados. Seus olhos negros e sem vida me encaravam.
Senti minha respiração vacilar e apertei os olhos. Nate colocou as mãos nos bolsos da calça cinza e curvou o canto de sua boca para cima. "Sua máscara não vai demorar muito a cair." Uma voz áspera soou baixa em minha cabeça. Senti o terror correr pelas minhas veias. Pisquei várias vezes, mas como num passe de mágica, o fantasma do tormento desapareceu dali. Continuei com os olhos fixos aonde ele tinha estado a um segundo atrás, sentindo meu coração pesar de medo.
Um toque me trouxe de volta à realidade. Virei-me lentamente para a garota atrás de mim.
- Puxa vida. - Safira Hedckens franziu a testa e sorriu de lado - Viu um fantasma?
Pela sua expressão quando me viu, eu devia estar com uma cara de morte. Sorri de lado e baixei os olhos.
- Mais ou menos isso. - ela franziu a testa, mas não fez mais perguntas a respeito.
Safira Hedckens era uma das melhores "amigas de bebedeira da Nick", era assim que eu chamava as pessoas que faziam parte de sua roda de amizade, e que sempre estavam no bar com a gente para colocar uma pra dentro. A maioria era despreocupada, algumas eram até desprezíveis, mas Safira Hedckens era amigável. Seus ondulados cabelos castanho-escuro caíam até a altura do peito. Os olhos de um tom verde musgo eram enquadrados com uma maquiagem forte, realçando sua pele branca. Os lábios avermelhados esboçavam um sorriso simpático.
Ela deu dois tapinhas em meu ombro, como se fôssemos velhas amigas nos reencontrando e depois cruzou os braços.
- O que anda fazendo de bom, Collins?
"De bom? Nada." Era seria a resposta certa, mas eu não queria explicar que andava tendo pesadelos frequentes com meu namorado morto e que provavelmente teria que conviver com aparições do defunto me assustando e dizendo frases estranhas.
- Nada demais. - passei os olhos em volta - Ah, e você viu Nick por aí?
- Não... Ela deve estar vomitando nos banheiro das escolas por aí por causa da rodada de ontem. Você foi embora cedo...
- Só queria saber se ela estava bem.
Safira abafou uma risada baixa ao me ouvir dizer isso.
- O que foi, Hedckens? - perguntei, passando o peso do meu corpo de uma perna para a outra.
- Acho estranho você se preocupar tanto com ela.
- O quê? Por que não me preocuparia? O que há de errado em se preocupar com uma amiga?
- Nada. Pelo contrário, é mais do que certo se importar com uma amiga. Mas Nick não é sua amiga. Você nunca notou, Collins?
- Do que você está falando?
Safira arqueou as sobrancelhas e apertou os lábios, como se tivesse tocado em um assunto que não devia.
- Sem querer ofender, mas você é lerda. - ela disse tão diretamente que foi como um soco no meio do nariz, apesar de eu já ter escutado essa expressão várias vezes.
- Como se eu já não soubesse. - murmurei e ela riu - Agora fala logo o que queria!
- Olha, eu não estou... Querendo estragar a amizade de vocês duas, nem nada do tipo. Que isso fique bem claro. Mas eu sinto que preciso te dizer, acho que não seria justo não contar, já que depois você iria acabar descobrindo da pior maneira. Mas eu vou falar logo, sem rodeios. A questão é que... Cara, a Nick te odeia.
Senti minhas pernas falharem. Se Safira me dissesse aquilo de novo ou me desse um tapa na cara, daria na mesma coisa. Minha incredulidade se transformou em um sorriso torto.
- Ahn... Mas... Como assim, eu não...
- Você pretende terminar alguma dessas frases?
- Como você pode ter tanta certeza disso? - perguntei, o que soou em um tom de desafio. Safira jogou os cabelos escuros para trás.
- Veja, eu sou uma pessoa muito observadora. Estou sempre observando tudo, todos os mínimos detalhes. Eu sempre fui assim, então eu meio que tenho um, digamos, um dom. Eu consigo ver o humor das pessoas e seus sentimentos através de seus olhares. Uma coisa que aprendi é que os olhos nunca mentem. A verdade não pode ficar escondida por muito tempo.
- E o que isso tem a ver com Nick? - perguntei, ansiosa.
- Vamos chegar lá. Acontece que eu sou amiga de Nick há muito tempo, então eu a conheço melhor do que ela própria se conhece. E eu sei muito bem o que ela sente por você, Collins. Toda vez que você está com a gente, ela te lança olhares atravessados. Posso ver a raiva que ela sente de você, a inveja.
- Por que Nick sentiria inveja de mim?
- E seu comportamento também muda. - Safira me ignorou - Quando você está por perto, ela quer se sobressair mais, percebo que sempre tenta atrair mais atenção para si. Por que você acha que ela nunca ri das suas piadas? Sempre te interrompe quando você está falando? Te ignora toda hora? Te envergonha na frente de um monte de amigas, contando piadas sujas sobre você? Cara, pra mim está mais do que evidente do sentimento que ela tem por você, Collins. E eu garanto que não é amor.
Eu tentei dizer algo, mas as palavras se prenderam em minha garganta. Eu estava abalada demais para poder dizer algo. Safira ajeitou a alça da mochila sobre o ombro.
- Tenho que ir. Preciso resolver algumas paradas aí.
- Hedckens! - gritei antes que ela fosse. - Obrigada.
- Não tem porque agradecer. - ela sorriu - Um grande sábio uma vez disse: "quem avisa amigo é".
Comecei a rir, e Safira atravessou o corredor. Ela era uma boa pessoa. Mas então suas palavras começaram a borbulhar em minha mente. "Cara, ela te odeia" "Posso ver a raiva que ela sente de você, a inveja". Sentei em uma das mesas do refeitório, apoiando o queixo sobre minha mão.
"Ah, mas tenho que trabalhar de novo? Estou cansado de raciocinar! Preciso de um descanso!" uma voz fina soou em minha mente. Senti uma pontada de alívio ao notar que não era a voz áspera do fantasma do tormento de Nate. Parecia aquelas cenas de filme quando sua consciência fala com você. Sorri ao imaginar a cena.
- Algo a diverte? - perguntou uma voz à minha frente.
- Meus pensamentos. - disse tamborilando os dedos em minhas bochechas. Elizabeth tomou um gole de café em sua mão.
- O que está fazendo? - perguntou.
Suas mãos mexiam nos bolsos da jaqueta, nos bolsos da calça de moletom, alisava o cabelo, rodavam a tampa do copo em suas mãos. Ela tinha olheiras profundas - ainda mais profundas e escuras que as minhas - que, obviamente, estavam em parte escondidas pela maquiagem. Sua expressão estava diferente. Parecia-se com aquelas crianças que comiam doces demais, e em seguida saíam por aí tocando a campainha da casa dos outros e corriam.
- Estou ensinando os pernilongos a ler. - murmurei com ironia - E você?
- Engraçado. - disse Elizabeth, se sentando ao meu lado no banco de madeira. - Você parece bolada.
- Eu estou bolada.
- O que aconteceu de tão bolante que eu não tomei conhecimento?
Respirei fundo antes de responder. Eu estava conversando com Elizabeth. Assim que eu terminasse de falar, ela provavelmente ia pular com um gravador e sair correndo postar em um blog de fofocas. Mas se isso acontecesse, o que teria de mal? O que eu tenho a perder se contar?
- Nada de muito interessante. Só que minha melhor amiga... Ou eu acho que é minha melhor amiga, me odeia.
Elizabeth franziu a testa.
- Aquela garota de cabelos cacheados? Ah. Eu, particularmente, meio que já tinha notado algo de diferente nela. Mas não diferente do tipo bom, diferente do tipo ruim.
- Como assim?
- Sabe quando eu, hum, te empurrei e você caiu, e acidentalmente quebrou o pulso devido ao piso escorregadio?

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