Harker - Parte 2

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3 de maio de 1973, 21 horas – Cheguei à pequena cidade interiorana no início da tarde, depois de ter almoçado no delicioso restaurante do trem. Preciso lembrar de conhecer o chef na volta; é um homem de talento. Senti-me renovado e pronto para desvendar o tal mistério; incumbência que – creio – tenha me sido dada em reconhecimento à minha competência nas últimas matérias que entreguei. Meu faro investigativo apurado é crucial para que o jornal tenha os melhores ângulos; muitas vezes, consigo chegar à verdade antes mesmo da Polícia.

Da janela do trem pude avistar um castelo em estilo medieval localizado bem no centro da cidade, construção que me chamou a atenção por sua total dissonância com a localização; como se tivesse sido retirado de seu endereço original e colocado no centro do ermo vilarejo embutido no Vale das Araucárias.

O hotel para onde fui encaminhado é humilde, como provavelmente tudo no minúsculo município. O cheiro característico de umidade das florestas impregnou o quarto e transformou-se em mofo, coisa que expurgamos da capital.

Assim que deixei as malas na pousada – já que não posso chamar de hotel a pocilga que mais me lembra uma estalagem – procurei ambientar-me com os moradores sobre suas impressões quanto aos crimes. Todos me olhavam com admiração, ainda que minha figura alta e imponente certamente causou-lhes certo espanto. Pude perceber uma moçoila de olhos azulados me observando de soslaio e aproximei-me, pedindo-lhe informações mais detalhadas dos sumiços.

Com o magnífico nome de Luna, explicou-me resumidamente o que sua timidez permitiu:

- A cidade toda falando, seu moço, que é as feiticeira agindo novamente. Os homi são os alvo delas. Elas procura os que tem mais dinheiro, porque elas faz a mágica dela e some com tudo. Elas capa eles e leva o dinheiro – cochichou, ruborizada, aproximando-se de mim com a delicada mão cobrindo o rosto.

Seu linguajar me indicava que tinha pouco estudo mas, de tudo que disse, a existência de feiticeiras foi o mais absurdo despautério que já ouvi na vida. Luna era uma moça bela, mas a tolice de suas crendices roubava-lhe parte do encantamento. Não pude deixar de gargalhar. Sua ingenuidade beirava a ignorância. Balancei a cabeça em negativa e voltei os olhos ao grupo de homens que conversava próximo à padaria-restaurante.

Cumprimentei-os com um aceno e segui em direção à delegacia de Polícia. O responsável pelo expediente era um homem baixo e com uma barriga em pleno crescimento espremida nos botões de uma camisa azul desbotada. Ao me ver, adiantou-se em dizer o nome e o cargo, como se sua posição lhe assegurasse alguma credibilidade. Não sei se por vício de cidade grande ou de tantas corrupções que vi ao longo da carreira, aprendi a desconfiar daqueles que se entendem como os mais poderosos.

- Meu rapaz, sou o delegado desta linda cidade. Garanto que tudo está sendo providenciado para que sua reportagem faça jus às nuances do caso. Já deve conhecer as lendas da cidade e certamente já lhe contaram sobre as feiticeiras. São lendas antigas, fruto da imaginação dos antigos habitantes do local, colonizadores espanhóis. Elas seduziam os homens e cortavam-lhe o membro. Capavam, sabe?

Quase gargalhei quando a suposta autoridade do local demonstrou toda a sua certeza quanto a veracidade do mito local, falando como se algumas moças de gosto sádico pudessem ser feiticeiras. Tenho tudo para acreditar que o feitiço que faziam é o que qualquer mulher bonita faz. A galhofa em meus olhos ficou evidente, todavia, porque a careca do homem se enrugou em linhas paralelas até as sobrancelhas. Não fosse eu tão discreto, poderia perfeitamente ter soltado o riso que ficou-me preso à garganta, especialmente ao perceber que o bochechudo me encarava com raiva.

Saí do prédio antigo e empoeirado certo de que os crimes nunca seriam solucionados pelas autoridades. Caminhei até o hotel, onde sentei-me no restaurante e pedi o único item comestível do exótico cardápio: uma salada de folhas e legumes. O arrependimento não tardou e veio acompanhado do prato colocado à minha frente. Olho para ele, neste minuto, com certo enojamento, e penso algumas vezes antes de garfar alguma coisa. O excesso de óleos e temperos deixou o mais simples prato com aparência de uma sopa gordurosa.

Senti-me um tanto embaraçado em recusar a comida, especialmente depois que descobri tratar-se de iguaria da região. Começo a comer sob os olhares atentos do dono e cozinheiro e, ao seu primeiro sinal de distração, dei-me por satisfeito, afastando o prato e puxando o bloco de anotações.

- Acho que o senhor deveria conversar com o pároco. A igreja é grande, de pedra branca e fica bem no meio da cidade.

Será meu primeiro compromisso amanhã!

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