A outra realidade

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    A garota pulou de cima da caixa d'agua para o chão da cobertura,
aterrissou bem na frente do rapaz que arquejou de susto. Ela respirava
lentamente, encarava seus olhos sem piscar. O jovem estava ofegante
e tremendo. Vai me matar agora.
    A garota ergueu-se do chão,
observou o pânico do garoto e se afastou dois passos para trás – ...você
não pode contar a ninguém o que viu naquela noite! – disse ela enfim
com a voz firme – ... vi o que acontece com quem tenta revelar este segredo e não consegue – completou ela. A garota encarou o pôr do sol em seus últimos raios por cima do ombro do rapaz a sua frente –... você está tentando descobrir, eu sei... – disse novamente lançando seu olhar gélido sobre Will que estava mudo e imóvel – mas, não devia! – encaro-o sem piscar. Seus olhos antes escuros, agora estavam ficando mais claros.
   O sol se põe completamente atrás do jovem editor de decupagem.
    A lâmpada florescente erguida sobre a alvenaria do quartinho em
construção, iluminava o terraço com sua luz branca.
    Will tentava controlar o pânico, sua mão esquerda tremia
descontroladamente, ele a encarou, fechou-a em punho tomando
coragem, adormeceu os olhos e se conteve – milhares... – sussurrou
ele procurando as palavras certas – de pessoas morreram naquele dia...
e ninguém sabe quem realmente as matou – disse ele erguendo seu
olhar. A garota não demonstrou nenhuma emoção ao escutar aquelas palavras – acha que eu as matei? – questionou ela. O jovem estava
nervoso – você nem ao menos tentou salvá-las – retrucou ele. A garota
gótica entendeu o ponto de vista do rapaz – não sou uma heroína de
gibis, garoto! – e se virou para ir até o corrimão ao lado do jovem.
   Will tentou se manter firme, seguindo-a com os olhos – então, porque age como uma... porque... porque você impediu aquele monstro? – A menina parou, o encarou profundamente durante alguns segundos e então, em um estalo, ela desapareceu da frente de seus olhos. Deu um pulo para o alto e sumiu, o rapaz ergueu o olhar para o céu, mas já não a via mais. Soltou o ar dos pulmões e respirou como se tivesse ficado horas sem respirar. Curvou-se com as mãos nos joelhos e respirou.
   Merda, achei que ela fosse me matar.

                             ▪ ▪ ▪

    As estrelas brilhavam sobre a avenida Paulista. O céu estava
limpo. O som da cantoria de buzinas dos automóveis, soavam por
entre os prédios comerciais. Luzes de diversas cores refletiam pelo o
espelhado das janelas. A grande avenida era uma colmeia de
vagalumes que estavam em constante movimento.
   Do alto de um edifício do centro de São Paulo, os pensamentos
mais obscuros da garota gótica flutuavam sobre a cidade. Sentada na beirada do prédio encarando o horizonte, tendo uma visão privilegiada da longa e famosa Avenida Paulista.
    10 horas de um sábado à noite.
O vento frio já cantava seu sussurro, mas a jovem mal o sentia, usando
apenas um casaco preto, uma calça colada escura e fones de ouvido,
balançava seus pés sobre o abismo logo abaixo.
    Mais um sussurro o vento lhe soprou.
A garota ergueu seus olhos verdes para o céu e encarou as estrelas,
apenas as encarou, durante a noite inteira ela as encarou, até o sol
nascente do dia seguinte ofuscá-las.
                  
                              ▪ ▪ ▪

     O despertador sobre o criado-mudo marcava 03:52 da
manhã.
     Os lençóis de algodão se contorciam sobre uma cama vazia. A luz amarelada vinda do banheiro clareava parcialmente o quarto e parte do outro cômodo. Haviam mudas de roupas largadas por toda parte, sobre a escrivaninha, sobre o computador, e sobre um ventilador largado no rodapé da parede, junto ao lado da cama. Também haviam
embalagens de salgadinhos abertos e jogados pelo chão, restos de seu
conteúdo sujavam a cerâmica branca.
     A trilha levava até aos pés de Will, zumbificado e imóvel, de pé
em frente a sua janela aberta, encarando a favela dormir lá em baixo.
    Parecia ansioso, já fazia um mês que não ia trabalhar, que não pegava o micro-ônibus e que não via aquela garota misteriosa, poderosa... e
bonita. A imagem daquele monstro gigante ainda o assombrava.
    Existe uma outra realidade que desconhecemos.
    O jovem Will levava uma vida pacata e sem graça. Jogava
videogame quando estava de folga e assistia vários filmes. Seus
colegas de trabalho sempre o chamavam para sair, mas não gostava de estar entre eles, não por um sentimento de rancor, mas sim pelo
fato de gostar de estar sozinho. Um garoto normal sairia com os
amigos sempre que pudesse, mas Will era diferente. Tudo o que queria
quando estava de folga era ficar em casa o dia todo, sem precisar sair
para nada, ter realmente um dia de folga. O jovem acordava bem cedo
e cumpria a sua programação. De manhã, tomava seu café no terraço
de casa quando o tempo estava bom. Lia uma boa parte dos livros que
não conseguia ler no trem, na volta do trabalho, pois sempre adormecia repentinamente. Em seguida, fazia alguns exercícios, manter uma boa forma para aguentar tantas jornadas diárias na semana. Tirava sempre um tempinho para desenhar, também assistia à seus animes favoritos e aos filmes que selecionara durante a semana para assistir na folga. Para encerrar o dia, jogava seus games a tarde inteira.
    O despertador gritou sobre o criado-mudo. Will se virou para
encara-lo. vamos lá.

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