Depois de chegar em casa ontem eu fui direto para o meu quarto com um rápido "boa noite" para o Dylan.
Pensei tanto no que aquela maldita cartomante disse que a minha cabeça quase fundiu. Me sentei na beirada da cama já vestida com a minha camisa de pijama da série Orange Is the New Black e tirei a foto que eu mantinha guardada dentro da gaveta da minha mesa de cabeceira.
Minha mãe, Esmeralda.
Sempre que eu vejo essa foto de quando ela era mais nova um arrepio me sobe pela espinha: eu sou idêntica a ela, sem tirar nem por. Claro, meus olhos são de cores diferentes, mas de resto parece minha imagem olhando diretamente pra mim. Ela sorri tão linda, feliz com os outros quatro amigos a sua volta. Talvez eles significassem tanto pra ela como Declan, Dylan e Frank significam pra mim... Talvez significassem tanto que quase chegassem aos pés de Scot.
Por mais que eu não saiba e que isso seja pra sempre minha maior incógnita, eu sinto que se eu tivesse minha mãe comigo as coisas seriam muito diferentes... Minha vida seria diferente.
Amor? Não sei, talvez. Mas proteção, cuidado e atenção durante a minha infância e meu crescimento, teria dado uma reviravolta na minha vida, até mesmo meus olhos estranhos notariam a mudança. Não consigo nem imaginar como tudo a minha volta seria se tivesse seguido por esse outro caminho...
Guardei a foto de volta ao seu lugar e enfim me deitei com um suspiro cansado.
— Sabia que cada suspiro que você solta é uma parte da sua felicidade que você está deixando escapar? - Scot me olha com uma sobrancelha arqueada e um sorriso torto na boca, enquanto dedilha seu violão ao meu lado.
— O que? - desinteressada, eu me viro pra ele e reviro meus olhos. - Não começa com esses provérbios pra cima de mim já cedo à essa hora, Scot.
Revoltada é a palavra que me define nesse momento enquanto relaxo nos meus minutos de descanso no banco de uma das praças de Belmont, no Bronx. São nove horas da manhã, chegamos aqui às seis e estamos tocando e cantando desde então. Eu gostei do lugar, do verde e da arte de rua no meio de tanto asfalto e tijolo, mas em breve vamos ter que sair daqui e ir tocar em outro ambiente. Scot não gosta de ficar muito tempo no mesmo lugar, ele diz que as pessoas acabam enjoando da nossa música e permutar em outras áreas acaba sendo o ideal. Eu só vou atrás, pelo menos assim conhecemos coisas diferentes.
Viver nas ruas e trabalhar nelas acaba te colocando em situações perigosas e insalubres, mas tem suas vantagens também, por incrível que pareça. Observar as pessoas é uma delas, observar suas vidas e seus passos milimetricamente calculados.
Minha mais nova vítima é a Sra. Smurf. A chamo assim porque todo dia ela aparece por aqui usando uma blusa azul, o modelo pode variar, mas a cor é sempre a mesma. Ela mora em um modesto prédio de tijolinhos à quinze metros daqui e trabalha numa pequena loja de tecidos em frente a praça onde estamos, atravessando a rua. Ao nosso lado está uma cafeteria com grandes janelas de vidro que está sempre lotada, inclusive conta com a presença a Sra. Smurf que todos os dias aparece pra tomar seu café da manhã com o marido.
E é aí onde mora o problema, seu maldito marido.
O casal sempre passa discutindo a nossa frente à caminho da lanchonete. Ou melhor, somente o marido tem o direito de falar, a repreendendo e xingando-a, porque a Sra. Smurf apenas abaixa a cabeça em silêncio, se preocupando apenas com seu trabalho árduo de disfarçar as expressões de dor enquanto manca de uma perna.
Eu reconheço de longe uma pessoa que sofre agressão, por experiência própria. Se todos dessem uma segunda olhada para os outros à sua volta também notariam. A pessoa agredida simplesmente quer sumir desse mundo pra nunca mais voltar, ela se fecha nela mesma, se tranca no seu próprio sofrimento, seu corpo denuncia isso não só pelos machucados que as vezes nem são físicos, mas também pela forma como os ombros caem, o corpo encurva, a cabeça pende de forma submissa... tudo pra tentar ficar menor, menos exposto e passar despercebido pra que ninguém note a sua presença.
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Meu Caos Nos Seus Olhos - Livro Dois
RomanceTendo a mãe falecida e sem nunca ter conhecido o pai, Sara Castillo foge da casa dos avós em Cameron (Missouri) onde morou até seus 14 anos e vai viver nas ruas de Nova York. Por um longo ano ela teve que conviver com o perigo e a miséria, mas tamb...