Capítulo 1

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Eu não gosto da ideia de constatar, olhando para trás, que minha vida tenha se tornado um fracasso, como uma sucessão decadente de tentativas frustradas, mas infelizmente é o que acontece quando a gente se aproxima dos quarenta anos e percebe que as coisas não aconteceram conforme o previsto.

Assim como a maioria dos adolescentes até meados da década de noventa, eu sonhava em começar uma banda de rock. É um sonho clichê, eu sei, e me sinto uma droga, agora, ao notar isso. Minha banda começou igual uma brincadeira, com amigos pegando emprestado instrumentos dos familiares e tocando em um quarto fechado e fedorento. Eu era orgulhoso demais para aceitar qualquer outra posição que não fosse o vocal, porque queria ser o líder, o que foi logo aceito, considerando que ninguém ali tinha uma voz premiada com Grammy. Consegui uma guitarra emprestada com um tio desajustado e logo aprendi a lidar com ela. Ninguém levava aquilo realmente a sério, e meus pais se mantinham no topo da lista. Talvez essa fosse a razão pela qual, todos os dias, pediam para que eu parasse com aquela palhaçada e procurasse um emprego "de verdade", já que uma banda de rock jamais poderia entrar nessa categoria. Eles também pediam para que eu aparasse minha barba, que não parava de crescer; eu acreditava que podia acrescentar um charme à carreira artística, algo bastante hipster que me ajudava a levar garotas para a cama após as apresentações e a posar para fotos maneiras que eu imaginava que um diria ganhariam as páginas das revistas. Com muita dificuldade, conseguimos elaborar covers de gente conhecida, como os Rolling Stones, Bob Dylan e os Beatles, embora, claro, as nossas versões não se parecessem em nada com as originais e provavelmente soassem como um ultraje aos fãs devotos. Nosso Dylan ficou bem mais psicodélico e menos rouco, nosso Beatles era horroroso e seria um insulto se chegasse aos ouvidos de Paul McCartney (John Lennon, que já estava morto, talvez tenha se revirado no túmulo), porém o nosso Rolling Stones, eu arrisco dizer, ficou bem mais interessante (nunca simpatizei com a maneira como Mick Jagger canta gemendo, como uma atriz pornô tentando a sorte no karaokê). Se nos perguntassem, dizíamos que erámos o novo Nirvana, embora o grupo original houvesse terminado recentemente em tragédia após o suicídio de Kurt Cobain — um momento emblemático que simbolizava para onde o rock caminharia nos próximos anos —–, mas que ainda soava cult para jovens que queriam parecer descolados. Ainda bem que não éramos famosos o suficiente para causar ofensa a fãs ou herdeiros do grupo — a egocêntrica Courtney Love certamente conseguiria nos atrapalhar mais do que a Yoko Ono atrapalhou a banda do marido —–, e apenas alguns parentes ouviram essa declaração em almoços de domingo, todos concordando por educação, a maioria sem sequer saber o que era Nirvana, a banda ou a palavra que deu nome a ela.

Quando conseguimos ensaiar versões que soassem decentes e que não davam dor de cabeça após algumas audições, gravamos tudo em fitas K7 — o que, puxa vida, faz com que eu me sinta bastante velho agora. Eu as enviei por correio para algumas gravadoras. Claro, cometi o erro de começar pelas grandes, algo que todo iniciante faz. Logo depois, eu descobri que elas ignoram novatos sem piedade. Quando percebi que precisaria ser mais modesto, enviei outra leva de fitas para gravadoras menores, muitas que funcionavam de forma independente e caseira, e vi todas as nossas economias serem gastas com despesas de correio. A funcionária que me atendia se tornou uma velha conhecida ao longo dos meses, e bastava eu colocar os pés na agência para ela sorrir e perguntar: "para qual gravadora vai hoje?" Depois de certo tempo, comecei a ficar envergonhado de aparecer por lá e mudei de filial. Estava claro que nossa estratégia de aproximação não era eficiente.

Aquilo me aborrecia. Meus pais continuavam a reclamar da minha situação, pedindo que eu tomasse um rumo e decidisse o que fazer da vida, ao invés de apenas brincar de ser músico. Eles não sabiam, não faziam ideia, mas aquilo estava longe de ser uma brincadeira para mim. Era meu maior sonho. Detesto o fato de as pessoas não entenderem que arte não é apenas algo que se faz nas horas vagas, que existem seres humanos que vivem disso, ou ao menos tentam, enquanto pensam em desistir todos os dias. Há pessoas que amam a arte e não conseguem viver sem criá-la, e isso é um tanto quanto difícil de colocar na cabeça das pessoas. Eles lutam para sobreviver do seu sonho, porque sem ele a vida não faz sentido e não haveria motivo para continuar.

De qualquer forma, amigose parentes começaram a zombar, alegando que eu não tinha talento nem para comporjingles de refrigerante, muitomenos para gravar um álbum de rock. Eu me aproximava dos trinta anos e começavaa dar ouvidos a eles, quando chegou o início dos anos 2000, a grande virada doséculo; não foi o apocalipse como muitos previam, mas trouxe outras mudanças umtanto quanto significativas. 

Do Jeito que o Diabo GostaOnde histórias criam vida. Descubra agora