Capítulo 19

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CAPÍTULO 19

Volto para casa após horas dentro do estúdio. A primeira coisa que sinto são os meus dedos, que doem, embora a dor seja suportável. Anos sem pegar de verdade em uma guitarra são sentidos de forma dura, e agora eles parecem adormecidos. Sinto minhas cordas vocais trêmulas após cantar tanto. Sirvo uma dose do uísque assim que chego à sala. O Jameson desce ardendo pela garganta, mas, de certa forma, alivia o desgaste. Eu me sento no sofá e me sinto velho, velho demais para o rock and roll. Desejo, mais do que nunca, ser um Rolling Stones. Sempre me perguntei como Keith Richards sobrevive depois de tantas décadas, principalmente com toda a química que consome. Quero saber o que Paul McCartney faz para aguentar shows de três horas com quase oitenta anos. Acima de tudo, fico inconformado pelo fato de que eu, na casa dos quarenta, me sinta tão cansado e indisposto, quando sequer comecei uma carreira decente. Talvez eles apenas não pensem sobre isso. Deve ser esse o segredo da longevidade: não se preocupar, não pensar em problemas e parar de criá-los na sua mente quando eles não existem de verdade.

— Onde está você? — eu pergunto.

A sombra se mexe em um canto escuro da sala. Ele veste um terno cinza e seus cabelos continuam devidamente alinhados. O Diabo parece um modelo produzido para uma sessão de fotos e se joga no sofá sem esperar convite, como um amigo íntimo, depois olha para mim de forma impaciente.

— Boa noite.

— Boa noite.

— O que foi dessa vez?

Perceber que não havia sequer um motivo para chamá-lo me deixa envergonhado.

— Acho que você estava com saudades. — Ele ri.

— Na verdade, eu estava me perguntando... Hoje eu conheci um produtor que o Jonas me apresentou, mas ele não era Mark Johnson.

— Acalme-se, as coisas não funcionam dessa maneira.

— Como, então?

— Eu avisei que o Mark estava terrivelmente ocupado por esses dias... Olha, eu sou o Diabo, mas não faço milagres. Isso é coisa de Deus. De qualquer maneira, Mark vai aparecer, não se preocupe, mas ele não vai ter tempo de produzir todo o seu álbum, então você vai precisar trabalhar com mais de um produtor.

— O que ele vai produzir?

— Duas ou três faixas, eu imagino. É o suficiente. Vai trazer credibilidade ao seu disco e vai ajudar a divulgá-lo internacionalmente. O resto não importa. Eu aconselharia você a lançá-las como single, mas isso é uma decisão sua e da sua equipe.

— Entendo.

O silêncio paira na sala.

— Não me chamou aqui apenas para isso, certo?

— Eu precisava conversar com alguém.

O silêncio volta e começa a me incomodar.

— Como você faz isso? — pergunto.

— Isso o quê?

— Como é ser o Diabo?

Posso ver que ele está seriamente pensando a respeito, embora não tenha ficado nem um pouco surpreso com a minha curiosidade. Ele dá de ombros.

— É complicado explicar a um humano...

— Tente.

— É ser rebelde.

— Você se rebelou, não é mesmo?

— Era um pouco chato lá em cima. Eu tinha que ficar obedecendo ordens e tudo o mais, e havia aquela pressão para que tudo parecesse perfeito... Não era para mim. Aqui é mais a minha cara.

— Tem algum amigo?

Noto que ele fica desconfortável pela maneira com que franze a boca.

— Não tenho tempo para essas coisas.

— Deve sentir vontade de conversar com alguém... Sei lá, contar os seus problemas.

— Já tentei, mas isso nunca funciona. Ninguém tem problemas iguais aos meus, ninguém nunca entende. De qualquer maneira, quando se é um líder, quando se está em uma posição de poder que ninguém mais se atreveu a conquistar, é realmente difícil construir relações de confiança.

— Deve ser bastante solitário.

Ele faz que sim com a cabeça.

— Você tinha amigos quando morava no Céu? — pergunto.

— Alguns, mas eles eram meio falsos... Eu tentei convencer um ou outro a me acompanhar na rebelião, mas ninguém me deu ouvidos. Era aquela devoção... Tive que fazer tudo sozinho, mas valeu a pena. Não me arrependo de nada. Depois que saí de lá, obviamente todos cortaram contato comigo.

— Não poderia ser diferente.

— Ele não permitiria, é claro.

Eu me levanto e caminho outra vez até o barzinho.

— Aceita uma dose?

— Bem, eu não tenho nada melhor para fazer mesmo.

— Nenhuma nova alma a ser conquistada ou batalha para planejar?

— Ah, não. Anda meio parado ultimamente, está um pouco chato.

— E por que será?

— Não sei. Costumo ganhar mais seguidores quando há alguma crise financeira em um país capitalista, ou quando há eleições, e não há sinal de nenhuma das duas coisas em um país realmente populoso agora. Também não fiquei sabendo de nenhum desastre natural ou tragédia de grandes proporções. Quando acontece, geralmente tenho sorte.

— Pensei que as pessoas chamassem mais a Deus nessas horas.

— A maioria, mas alguns sabem que não têm mais salvação, então recorrem a mim.

— Provavelmente poupa tempo.

— Bastante. E, dependendo do desastre, às vezes elas não têm muito. Se for, por exemplo, um acidente de avião, sabe como é. Poucos segundos para rezar e bum! A pessoa precisa pensar rápido. Alguns demoram a decidir em qual lado vão tentar uma ajuda, cada segundo é precioso nesse momento.

Ele me analisa sério, eu finjo não perceber.

— Você parece um pouco triste hoje — afirma.

— Não é nada.

— Não se preocupe. Em breve, sua vida será tão agitada que você não terá tempo de se sentir sozinho.

— Algumas das pessoas mais solitárias são aquelas que estão sempre cercadas.

— Pode ser, mas não será o seu caso, acredite. Você terá tantas mulheres quanto quiser.

Ele se levanta, toma a sua dose e coloca o copo de volta na mesa.

— Os humanos dizem que cabeça vazia é oficina do Diabo. Não é esse o ditado?

— É, sim.

— Bem, não sei o que faz com que eles pensem dessa forma. Pareço um bocado ocioso e malvado desse jeito. Não é verdade. Às vezes, minha oficina também trabalha em cabeças bem ocupadas. De qualquer maneira, aproveite seu tempo livre e tente descansar.

O Diabo desaparece novamente.

Do Jeito que o Diabo GostaOnde histórias criam vida. Descubra agora