Capítulo 01

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O clima fúnebre passeia por todos os cantos e atravessa cada pessoa quando o badalar dos sinos, vindos da igreja, anuncia que chegou a hora de nos despedirmos de um membro da nossa cidade: Lie Place. Por aqui, a morte não é algo tão comum. Aparentemente, o ceifeiro não tem tanto trabalho nessas redondezas, por isso, talvez, seja este o motivo para as pessoas demonstrarem tanta solidariedade. Porém, enquanto analiso cada feição que anda pelas ruas direcionando-se à igreja, no mais absoluto silêncio, não acredito que seja esta a verdadeira razão. Conheço estes moradores o suficiente para compreender que não se importam com ninguém. Na verdade, estão apenas fingindo, com maestria, um sentimento de tristeza. O que passa com o outro não tem importância desde que não atinja sua própria imagem.

Em Lie Place, vivemos de aparências, emaranhados em teias e mais teias de mentiras e segredos. Portanto, para garantir a própria sobrevivência, é necessário estar disposto a fazer qualquer coisa e saber se posicionar de maneira estratégica. O lema que reina nas nossas entranhas — ainda que nunca dito escancaradamente — é simples: ninguém é inocente até que se prove. Com sutileza, apontamos prováveis culpados quando preciso, criamos inimigos e duelamos à surdina, mas com toda a sagacidade imprescindível para resistir às traições e consequências.

Retorno à realidade após meu breve momento de reflexão. Os corpos, completamente vestidos de preto, direcionam-se à porta da igreja alguns metros à minha frente. À medida que entram no Santuário, prestam suas condolências à família Wilkinson, que está assolada pelo luto. Sorrisos pequenos e palavras de conforto são ditos a eles por cada cidadão que passa, mas não acho que estejam aceitando nada. Especialmente falsos sentimentos.

Exceto pelo badalar esporádico do sino e os sussuros das pessoas, está tudo acentuadamente silencioso na cidade. Em raros dias como este, quando o ar é impestado pelo cheiro da morte, ninguém usa carro ou qualquer outro veículo até que o funeral chegue ao fim. As ruas estão cheias de pessoas transportando o luto de um lado para o outro como se fosse um troféu. No fim das contas, talvez realmente seja. É o lembrete perfeito para entender que continuamos vivos e que a vida segue ávida pela nossa perspicácia. A qualquer preço.

Meus pais sinalizam com a cabeça para a senhora e senhor Wilkinson quando chegam à porta, mas eu paro antes de subir os degraus e fico olhando ao redor, não sabendo exatamente o que estou procurando. Meus olhos encontram os de Alex Campbell, meu irmão mais novo, mas não trocamos palavra alguma. Sua feição está consumida pela tristeza e dor. Suas retinas estão avermelhadas e os lábios bem ressacados. Minha expressão está indecifrável, do jeito que costumo deixá-la. É uma habilidade que desenvolvi aos oito anos para que ninguém, jamais, conseguisse usar minhas dúvidas e incertezas contra mim.

— Garotos? — Meu ombro sente o peso da mão do meu pai quando sua voz atravessa meus ouvidos, tirando-me do transe. Por cima do tecido da minha camisa consigo sentir seu aperto suave, mas preciso. — Não vão entrar? — Ligeiramente, desvencilho-me do seu toque e encaro-o. Não notei quando desceu os degraus e veio na nossa direção.

— Sim. — Alex responde e segura a mão do nosso pai, Jonathan Campbell. Reviro os olhos com a cena patética deles dois. Laços familiares servem para te deixar fraco e, definitivamente, não gosto de me sentir inclinado à falha.

— Lyno? — Como estou próximo à escada que leva à entrada da igreja, alguns ombros batem em mim levemente quando Jonathan pronuncia meu nome. Quase que imediatamente ouço pedidos de desculpas e posso voltar ao diálogo com minha adorável e amorosa família Campbell.

— Sabe que não queria estar aqui. — Respondo indiferente e escolho calculadamente as palavras seguintes. — Não me importo que aquele garoto estúpido esteja morto. — Disparo com sinceridade, arrancando um olhar de desaprovação do meu pai e uma reação de fúria do meu irmão Alex. Honestamente, tudo isso me proporciona uma sensação extasiante de divertimento.

— Nunca mais fale assim do Benjamin, está entendendo?! — As mãos ágeis e fortes de Alex agarram a minha gravata preta, o que me deixa momentaneamente sem ar. Embora ele seja um ano mais novo do que eu, tem mais força. Arquejo a sobrancelha e lanço o meu olhar mais mortal a ele. Posso ver o fogo estimulado pelo seu luto consumi-lo e, sem dúvidas, isso me garante que atingi todos os pontos sensíveis no seu interior. Exatamente como previ.

O ar está quase prestes a escapar completamente dos meus pulmões, mas não desvio o olhar. As mãos do nosso pai repousam sobre as do Alex, que continua apertando o tecido da minha gravata. Jonathan é cauteloso, já que não quer chamar mais atenção. Em vez de usar força física, apenas tenta controlar a situação à sua maneira enquanto sorri às pessoas que veem a cena inusitada em frente à porta da igreja.

— Garotos? — Jonathan repreende sutilmente, fazendo Alex me soltar aos poucos, mas sem quebrar o contato visual. — Estamos em um velório. Parem com isso.

Arrumo a gravata e dou um sorriso presunçoso para Alex, que morde o lábio inferior para conter o desejo de revidar com socos e muita violência minha petulância.

— Nunca mais faça isso. — Sentencio pausadamente, fuzilando-o como um míssil prestes a atingir seu alvo. — Não quero ter que deixar este dia mais instável do que já está. — Afasto-me deles quando vejo meus amigos aproximando-se com suas famílias.

O Renitente - O Preço da MentiraOnde histórias criam vida. Descubra agora