Capítulo 30 - Crise

4.4K 453 187
                                    

Meu olhar atravessou o rio até o outro lado, onde cabanas jaziam cheias de nativos ilhados em meio ao temporal violento que se tornava pior e pior. Pressionei os dedos em meu uniforme – ainda mais pesado debaixo d'água e com todos os equipamentos extras para o resgate – puxando uma corda enquanto aguardava as ordens de Guilherme, agora no comando.

"Vamos pelo canto leste onde o temporal vai demorar um pouco mais para pegar. Só temos 10 minutos, estão ouvindo? Dez minutos!", sua voz foi alta e clara, mesmo com todo o barulho da ventania em nossos ouvidos. "Agora!"

Comecei a correr com os demais, nos encalços de Joaquim, Pedro e Inácio. Meus coturnos afundavam na terra lamacenta a medida que avançávamos contra as águas ainda rasas do caminho indicado por Guilherme.

Quando finalmente cheguei ao outro lado, fui cercado por um grupo uniformizado do meu pelotão. Ao erguer o olhar para fitar seus rostos, uma surpresa. Eram Alice, Tamires, Fábio e Edgar.

"Você não merece usar essa farda", disseram-me. "Ou farda nenhuma. Você não merece ser nada, roedor."

Prestes a me acertar com seu punho fechado, Fábio desintegrou e eu dei um pulo da cama ao despertar daquele pesadelo, afobado. Toda a paisagem desapareceu reassumindo as características do meu quarto.

Estava sentado sobre a bicama, Guilherme dormindo na debaixo, todo esparramado. Ele também parecia estar preso a um pesadelo, pois seu corpo estava banhado em suor e sua expressão não parecia das melhores. Seu pulo veio em seguida.

"Nós continuamos tendo pesadelos", quebrei o silêncio, molhando a face na pia do banheiro. "Precisamos fazer algo a respeito. Talvez ir a um psicólogo", cogitei. Guilherme me olhou como se eu estivesse fora do juízo perfeito enquanto desencaixava o creme dental para esparramar na escova. "Eu quero dizer, o Sargento Leonardo Correia tinha nos dito que qualquer coisa podíamos consultar um disponível no pelotão."

"Ficou louco?", sua reação foi quase de uma ofensa. Percebi pela força com que bateu a porta-espelho do pequeno armário do banheiro depois de cuspir toda a mistura de água e creme dental. "Eu não vou a psicólogo algum. Não estou maluco."

"Deixa de bobagem. Psicólogos não atendem apenas malucos", reclamei. "Aliás, mais respeito com as pessoas que está chamando de malucas".

A discussão não rendeu, para a minha sorte. Eu sabia que por um lado tinha relação com o fato de citar nosso antigo superior. A expressão de meu companheiro mudou imediatamente, e tenho certeza que todos os anseios e medos que vivemos na pele durante nossa viagem à trabalho em outras terras estavam tão vivos em sua mente quanto estavam na minha. No entanto, me vi com a nova missão de convencê-lo a ser atendido por um psicólogo e quebrar os tabus acerca da profissão e de sua importância. Já tinha ouvido falar a respeito desses possíveis episódios pós-traumáticos, mas ninguém lhe traz um manual informativo sobre como lidar ao retornar para casa.

Naquela tarde conversei com ele sobre os problemas da minha família e um pouco sobre meu período escolar para esclarecer alguns pontos.

"Eu gostava de estudar, queria ser médico. Servir a humanidade de alguma forma", confessei, sentado no parque onde estávamos passando o dia.

"Eterno sonhador..", ele sorriu torto e isso me desmanchou por dentro. Ah, se ele soubesse ao menos um pouco sobre o efeito que seu sorriso tem sobre mim. A maneira como seu maxilar quadrado se amplia evidenciando o pomo de adão e todos os traços masculinos que ele tem. A medida que todas aquelas linhas de expressão que se formam ao redor de seu sorriso vão surgindo, meu coração parece bater mais forte.

Me recordei das nossas brigas por conta da divergência de opinião nos primeiros dias da Missão de Paz e um sorriso também escapou dos meus lábios. Gui gostava de me alfinetar por conta dos meus sonhos.

Por Trás da Farda (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora