Depois do banho e do jantar, a maioria dos soldados estava em descanso enquanto Guilherme e eu fomos ao depósito realizar uma limpeza. Não trocamos muitas palavras inicialmente, nos restringindo a falar somente sobre o material e a divisão de tarefas.
Alguns minutos depois de termos iniciado a limpeza do depósito, fiquei me sentindo mal pelo fato dele ainda estar mancando um pouco – pois sua perna também foi atingida de raspão da outra vez – além de ter escoriações pesadas pelo corpo por ter me protegido na queda, e também por todo o nosso desentendimento. De uma maneira ou outra, fazendo minhas reflexões enquanto pressionava os dedos ásperos no cabo do esfregão até o chão brilhar, pude perceber que ele tinha razão em alguns aspectos: precisava encontrar o ponto de equilíbrio entre o meu coração e a minha cabeça. Agir somente com o emocional estava colocando a vida de meu pelotão em risco, além da minha própria. E, dentre todos, ele foi o único que se preocupou comigo de maneira tão pessoal, a ponto de me falar sobre sem ponderar. Realmente, eu devia isso a ele.
Dentro das instalações era ainda mais quente do que do lado de fora. O silêncio era cortado apenas pelo som dos utensílios de limpeza; os baldes que pegávamos pra jogar a água no chão e esfregar; ou o vento fraco que circulava pelo ambiente fazendo os armários estalarem, consumidos pelo salitro.
Quando nos reaproximamos na área dos banheiros, a uma distância tremenda da cerca de concertina que nos separava dos nativos e, teoricamente, nos mantinha em segurança das batalhas que enfrentávamos lá fora, tentei encontrar a coragem que me restava para confrontá-lo sem que isso parecesse uma briga: eu só queria agradecer.
"Guilherme", cocei a garganta, parando de passar o pano no chão por um momento para lhe falar. "Será que a gente pode conversar, cara?", tentei levantar a cabeça e olhá-lo. Algo dentro de mim soou como se ele fosse me corresponder, mas somente quando parou de limpar o sanitário e retirou suas luvas virando pra mim que renovei minhas expectativas, respirando de alívio.
"Eu tenho pensado bastante no que você tem me falado desde o começo, quando chegamos aqui, há quase seis meses", encontrei seus olhos enquanto falava, tentando não parecer nervosos demais enquanto fazia uma retrospectiva dos acontecimentos. "Você tem razão, eu sou muito idealista e sonhador. As vezes sonho alto demais e ajo com certa ingenuidade em situações que, para a minha atual profissão, não é vantajoso e nem inteligente", Guilherme permanecia atento as minhas palavras, cruzando os braços fortes rente ao peito com uma expressão bem séria. Como estava escuro exceto pelas pequenas frestas da janela, o que mais se destacava eram seus olhos claros. De certa forma, isso estava me ajudando naquele momento, além do seu silêncio. Senti que o cara estava encorajando-me a continuar e isso significou muito pra mim. Não desperdiçaria a oportunidade.
"Eu quero mudar o mundo e, posso até estar enganado, mas consigo perceber que você se importa, o que de certa forma significa que queira que o mundo seja mudado também. A diferença é que eu tenho agido mais a favor dos meus sentimentos, e já você, tem agido mais com a cabeça, mas os objetivos são os mesmos. Cada atitude sua me leva a acreditar nisso, e acho que há uma admiração mútua entre a gente", continuei.
"Não conheço sua história, suas origens. Você até sabe um pouco da minha porque costumo falar o básico, da minha família, do que penso, como sou. Mas você sempre foi mais fechado, nunca fala como tá se sentindo, você é um cara mais de falar com as atitudes e eu realmente admiro isso em você, além da sua coragem e bravura. Mas, cara, você não era obrigado a ficar me corrigindo, e até chegou a se arriscar por mim muitas vezes só pra me fazer enxergar. Antes pensei que você tinha algum problema comigo, que podia ser infantilidade ou falta de maturidade. Mas hoje, depois de tudo o que você fez, eu parei pra refletir e consigo perceber que não se trata disso. Você só está demonstrando que se importa, cara, e isso pra mim não tem preço", embargado pela emoção de ter alguém fora a minha família que fizesse tanto por mim em um lugar e situação que mexem tanto com o emocional da gente, acabei sentindo meus olhos marejarem.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Por Trás da Farda (Romance Gay)
RomansaFelipe era um jovem cheio de sonhos e ambições em relação a mudar o mundo, transformá-lo num lugar melhor. Isso o conduziu a se alistar nas forças armadas, até que chegasse ao Haiti para uma missão de Paz, onde conheceu Guilherme, um cara pé no chão...