Capítulo 9 - Pensamentos (Guilherme)

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O dia pareceu passar devagar. Primeiro porque eu não tinha pregado o olho preocupado com o Felipe. Segundo, porque ele não estava ali comigo e, de alguma maneira quase dolorosa, sentia muito a falta dele. Terceiro, porque eu queria que aquela Camila nunca tivesse existido. Tá, isso foi um pouco rude demais. Mas porque ela tinha que ser aquela princesa bonitona que – aposto – a família dele sempre quis ter como nora? Porque ela não podia ser uma feia, horrorosa, ou sei lá. Porque ela não podia parecer o conde Drácula?

"Tá tudo bem, Soldado?", algum superior me vê parado no corredor e me tira dos pensamentos infantis que, sinceramente, não sei explicar.

"Não, Senhor!"

"E o que faz parado há umas duas horas nesse corredor?"

"Estou aguardando para levar o Soldado Barreto de volta ao dormitório da Ala D, Senhor!"

"Ele será liberado agora mesmo, Soldado".

Enquanto entro na ala hospitalar, continuo processando meus pensamentos. Porque diabos to com tanta raiva dessa Camila e da família perfeita que ela vai formar com o Felipe?

"Guilherme?", o cara parece surpreso em me ver.

"Eu..", baixo o olhar tentando pensar em um jeito de me redimir por todas as merdas que eu fiz hoje. "Eu vim te buscar, vai que você quebra um braço no caminho", minha brincadeira o faz rir, e aquele sorriso dele abre diversas sensações aqui dentro de mim.

E isso não pode significar nada bom.

"Ainda bem que eu tenho você para todas as situações, né? Ó poderoso homem de aço", o cara mesmo doente consegue fazer gracinha e ainda ousa dar uns tapinhas no meu braço, com aquela voz rouquinha que ele tem.

O acompanho até o dormitório e, enquanto os caras arrumam suas coisas pra dormir, tenho uma pilha de roupas pra dobrar, e o Felipe também. Quando os demais se ocupam com suas tarefas pessoais preparando-se para dormir depois de um dia cansado, vou até lá fora ouvir a tempestade que começa a se formar.

Próximo a porta, tateio os bolsos da calça atrás de um cigarro. O acendo entre a boca e a proteção de minha mão contra o vento úmido trazido pela chuva, até que a chama se firme na ponta do cigarro, queimando o papel.

"Você devia parar", Felipe se aproxima de repente, encostando-se ao meu lado para também admirar a mudança de tempo.

Eu gostava da chuva; Felipe dos dias de sol. Mas a chuva me trazia uma calmaria momentânea. Uma paz volúvel e soturna como a confusão tempestiva que mora dentro de mim.

"Você quer falar sobre o pesadelo?", mudo de assunto; não vou discutir as maneiras como meus vícios consomem minha vida. Felipe parece ponderar; morde o canto da boca como se estivesse pensando se contava ou não. Só sei que não foi um sonho erótico porque ele usou a palavra pesadelo. Mas porque diabos estive cogitando que fosse um sonho erótico? Definitivamente, eu preciso colocar a minha cabeça no lugar porque aquela missão estava fodendo o resto dos meus miolos – e olha que eu já tinha poucos!

"Foi um pesadelo muito ruim, cara. A gente voltou pro sul do país, fomos tentar resgatar uns nativos que ficaram ilhados e eu fiz o que sempre faço, não obedeci as ordens do Sargento, acabei ficando com a perna presa na água", baixa seu olhar para fitar o próprio membro antes de respirar fundo. "Você tentou me ajudar, mas no fundo eu sei que isso foi a minha consciência pesando porque você tava certo o tempo todo. Eu preciso moderar a minha vontade de querer salvar tudo".

"Moderar sim", olho no fundo de seus olhos, tragando o cigarro devagar. "Desistir não".

Felipe encontra meu olhar e parecemos nos perder, na chuva, por uns instantes. Desconfortável com a nudez de minha alma perante seus olhos castanhos – que ficam bem claros com a chuva – me ajeito onde estou e começo a fitar a vegetação adiante.

"Tu não é o único que aprende muita coisa. Tenho aprendido muito contigo e, quer saber?", pressiono o cigarro entre meus dedos, levando-o a boca para uma sugada voraz. "Eu não vou deixar tu desistir de ser você".

Esclareço com o que vem de dentro antes de lhe dar as costas e voltar aos dormitórios. Pego umas coisas para tomar um banho antes de deitar e o reencontro no caminho, aparentemente balançado com o que lhe falei.

"Posso perguntar... Porque você disse aquelas coisas sobre... Voltar pra quem me espera, formar uma família... Ser feliz assim?", perguntou-me de repente, me deixando completamente desconcertado.

"Ah, não sei... Talvez tu tenhas alguém lá fora dessa loucura te esperando", forço uma risada que naturalmente não cola. Felipe parece me conhecer o bastante para reconhecer a minha barreira de defesa.

"Escuta, eu não...", ele começa a falar, mas o interrompo rapidamente.

"Relaxa, cara. Tá tudo certo. É bom ter alguém por quem vale a pena lutar pra voltar, né?", dou uns tapinhas em seus ombros e saio.

Não estava afim de ouvir sobre a felicidade dele e da Camila. Não mesmo.

Tomo banho antes dele. Tiro a minha roupa, chego no chuveiro e o abro sentindo o fluxo anestesiar minhas feridas. Quase não sinto dor de tão acostumado ao esforço diário. Inevitavelmente, começo a pensar em Felipe. Seu rosto me vem em mente com tanta clareza quando fecho os olhos. A maneira como ele ficou completamente suado durante o sono conturbado. Seu corpo naquele uniforme militar... Quando abro meus olhos, vejo como meu pau está duro, inchado e cheio de veias.

"Mas que porra?!", rosno, tratando de empurrá-lo pra dentro da água fria. Dou uns pulinhos me obrigando a pensar nos tiroteios, e acabo pensando em outras coisas tão ruins quanto.

"Você é um grande pedaço de merda! Eu vou bater em você! Eu vou te fazer homem, seu merda!", a imagem de meu pai – um veterano alcoólatra – abrindo seu cinto ao me alcançar me vem fortemente açoitando-me feito as balas que levei de raspão.

Abraço meu corpo debaixo d'água e deslizo os dedos em minhas costas pelas cicatrizes deixadas por seus ataques de fúria. Sou capaz de sentir a dor de cada uma delas enquanto me açoitava para seu deleite.

Desligo o chuveiro com desespero, ofegando ao me apoiar na parede fria. Todas as formas de violência regeram a minha vida até aqui e me tornaram quem eu sou, mas quando penso em Felipe, isso tudo parece se partir e se distanciar de mim.

O problema é que o passado me abriu feridas intocáveis que me transformaram completamente. E, por mais que ele seja esse ser humano incrível, reconheço que meu temperamento não é algo tão fácil de lidar.

Eu sei que se ele soubesse quem eu realmente sou, quando a verdade viesse a tona, ele não suportaria me olhar nos olhos.

Ele desistiria de mim.

Por Trás da Farda (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora