32 - Sexta-feira

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Vi o dia amanhecer. Ganhar cores e tons azulados de diversos tipos. Ouvi os primeiros pássaros ocupar os galhos das árvores e entrosar seu canto pacífico. Vi o tempo passar bem diante dos meus olhos como se fosse uma última vez. Era só uma questão de tempo que a tragédia se iniciasse e minha família se desmoronasse de uma vez só.

Entrei em casa e me dirigi a cozinha. Enchi a chaleira com água e depositei sobre a grelha do fogão, acionando-o para fazer o café. Peguei um saco de pães envelhecidos e os fatiei um a um até ter uma generosa quantidade de pedaços para fazer torradas. Passei manteiga e entreguei ao forno para que fizesse seu trabalho. Praticamente tudo o que restava na geladeira havia se estragado, então evitei abri-la durante os poucos minutos que fiquei ali, até servir o café da manhã na mesa.

Meus pais acordaram, e Fernanda e Camila em seguida. Todos se arrastaram para a sala em silêncio, ainda vestindo suas roupas de dormir. Fernanda ligou a televisão e deixou sem som para acompanhar o primeiro noticiário matinal. Camila serviu café para meus pais e eu, e fiz a gentileza de servi-la em seguida. Por fim, ela levou uma xícara à minha irmã, que agradeceu com um gesto.

Sentei ao lado de meu pai e Camila se sentou ao lado de minha mãe. Mastigamos em silêncio torcendo por um milagre.

"Nós fizemos o que pudemos", disse Fernanda, por fim, desligando a televisão e se unindo a nós a mesa. "Não adianta ficarmos nesse clima de enterro. Não temos a quantia necessária para cobrir as dívidas, perdemos tudo e é isso. Vamos recomeçar do zero", insistiu ela, buscando forças. "Podemos tentar alugar algum lugar pequeno temporariamente, com certeza alguém há de nos deixar ficar e aceitar o pagamento inicial em fragmentos até a gente se ajeitar", sugeriu, tentando ser o mais positiva possível. "E, antes que você fale, mãe, não acho que vão recusar a oferta apenas por causa do suposto escândalo da relação amorosa do meu irmão. Eles mal se recordavam que eu tinha um irmão até semana passada. Não sejamos tão dramáticos", findou, recusando as torradas que Camila oferecia durante o discurso.

Ninguém ousou se manifestar até que três carros estacionaram em nossa porta e a campainha tocou em seguida. Engoli em seco e senti meu peito apertar, mas respirei fundo e me lembrei de minhas missões no Haiti, o quanto Guilherme era frio e analítico nessas situações para pensar com cautela no melhor para todos.

Fui até a porta e a abri, dando de cara com todos aqueles que se articularam para nos derrubar. Seja lá quais forem os seus motivos, eu, sinceramente, não queria mais saber. Eram mentes mesquinhas, pequenas demais, entediadas demais com suas vidas para se preocupar com algo além do próprio umbigo. Tudo o que eu sabia é que a vida cobra seu preço. Eu era a prova viva disso.

"Vamos ser diretos e objetivos", disse, ganhando a atenção de todos. "Não conseguimos o dinheiro", meus ombros cederam, mas meu queixo permaneceu erguido. "Como vamos proceder agora?".

O olhar sarcástico de Fábio me fez imaginar como seria a reação de seu pai a medida que ele se aproximava. Era um homem de quase sessenta anos, mas com aparência de cinquenta. O terno caro, a gravata alinhada ao mesmo e toda a sua pose por trás das rugas bem cuidadas e do cabelo branco lhe davam um ar de superioridade, até mesmo a maneira como andava com sua mala lateral e uma penca de seguranças e puxa-sacos atrás. Ele lançou um olhar abusivo para cada um de nós reforçando todo o seu desprezo antes de falar.

"Está tudo aqui?", perguntou ao filho, que balançou a cabeça de um jeito divertido.

"Acho que eles tiveram a audácia de vender as nossas coisas", respondeu.

"As suas coisas? As nossas coisas, você quis dizer", retruco o comentário, mas meu pai assume a liderança e toca meu ombro me fazendo dar um passo para trás.

Por Trás da Farda (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora