3. Perigosa inocência

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Aos 10 anos parecia que minha carreira de atriz já tinha acabado. Eu até ia em alguns testes, mas eu era velha demais para papéis de criança e nova demais para papéis de adolescente. Se não bastasse, minha vida social era tão precária quanto minha vida familiar e profissional.

O engraçado era que eu buscava algo que mudasse minha vida drasticamente, inclusive que me mudasse junto como uma salvação. Eu queria ser amada, admirada e reconhecida por todos os meus esforços. Mas quanto mais eu buscava algo externo, mas me sentia vazia por dentro.

Minha mãe, como sempre, estava ocupada com seus relacionamentos. Geralmente duravam um ano, que era o tempo até ela perceber que o cara não queria nada sério. Meu pai biológico era alguém desconhecido para mim, então quando alguém me perguntava, eu respondia que ele morreu quando eu era um bebê. Não deixava de ser uma verdade, alguém morto é tão sem vida quanto um desconhecido por aí.

Porém minha mãe me apresentou um novo namorado, que dizendo ela, era pra valer. Ele parecia um homem de negócios, um administrador que achou interessante minha pretensão de sucesso midiático. Até ofereceu ajuda, dizendo conhecer alguns figurões do ramo. Eu não queria um homem na minha casa, mas se minha mãe estava feliz, eu já tinha um problema a menos.

Por um tempo eu comecei achar ele um cara legal. Extremamente simpático e engraçado, parecia uma boa pessoa para chamar de pai algum dia. Minha mãe confiava nele de modo que muitas noites ele dormia lá em casa. Algumas vezes eu estava de pijama, num daqueles meus pijamas de unicórnio, sentada no sofá longe de parecer uma dama quando eu o pegava me olhando fixamente. Era estranho, mas eu não me importava.

Até que uns 3 meses depois ele começou a agir como meu empresário, encontrando novos testes de comerciais e novelas para eu tentar. Alguns eram em outra cidade, o que dificultou a vida da minha mãe, que tinha um emprego fixo em um escritório de contabilidade. Mas como minha mãe confiava nele, ela deixou que o cara me levasse para um teste, o que significava dormir em hotel. Quartos separados, logicamente, previamente reservados por minha mãe.

Eu estava animada, sentindo que daquela vez eu teria a sorte de encontrar o papel que me traria redenção. Me pegava fantasiando uma carreira de sucesso, seguidores nas redes sociais e o respeito de meus colegas de escola. Tudo parecia promissor, a agência que me entrevistaria era de um amigo dele, o que me traria chances extras. Gostaram tanto de mim que eu já faria uma gravação piloto no outro dia.

A noite, de madrugada, acordei com um barulho na porta. Era ele, com uma voz baixa pedindo para eu abrir a porta. Eu ia abrir mas senti algo estranho, a mesma sensação de quando o via olhando para mim no sofá. Não abri, ele notou que eu estava atrás da porta sem falar nada e começou a justificar: "Eu cortei minha mão e preciso de remédio e curativo, sei que sua mãe te deu um kit médico". Eu permaneci totalmente muda, com o coração acelerado. Ele continuou dizendo que estava tudo bem em abrir a porta, que ele só ficaria um pouco e iria embora. Dizia até que nós poderíamos não falar nada disso para minha mãe, se eu quisesse.

Após algumas tentativas de fazer eu abrir a porta, ele desistiu. Ouvi de longe um palavrão que ele soltou enquanto batia a porta do quarto dele. Eu estava ainda ali, petrificada, com um medo que nunca havia sentido antes. Dentro de mim eu sabia que não deveria ter aberto a porta e tentava me convencer de que eu estava certa. Liguei para minha mãe e contei tudo para ela.

No início minha mãe riu ao telefone e disse que ele devia ter mesmo se cortado, que eu não precisava ficar com medo. Falava que ele era uma boa pessoa, alguém religioso e incapaz de fazer mal a uma mosca. Mas eu continuava aflita e até ignorei a sugestão dela de eu levar o kit médico até ele. Mal dormi naquela noite, tentando entender meus sentimentos, será que eu estava sendo maldosa com o cara?

No café da manhã ele apareceu sorridente, como se nada tivesse acontecido. Olhei para as suas mãos, estavam normais, sem nenhum corte. Eu perguntei é claro, não poderia deixar de perguntar porque ele mentiu. Mas ele desconversou e disse que eu entendi errado, que ele havia cortado o pé. Não consegui comer, fui para meu quarto e contei tudo para minha mãe ao telefone, chorando, pedindo para ela me buscar, com o mesmo pavor quase instintivo que senti na noite anterior. Eu não queria nem mesmo continuar os testes para o trabalho.

Nesse ponto eu poderia dizer que minha mãe me surpreendeu, eu pensei que ela não acreditaria em mim, talvez era por isso mesmo que eu já chorava tanto por antecipação. Mas ela me disse para ficar no quarto que em algumas horas ela chegaria. E foi isso que aconteceu. Eu ainda estava trancada no quarto quando ouvi a discussão dela com o namorado. Ele alegava que eu estava mentindo, que ele nunca bateu na minha porta, que era uma mentira ou pesadelo meu.

Naquele dia minha mãe me levou para casa, ela chorou por todo o caminho. Eu também estava muito triste, era como se nossas desilusões estivessem caindo sobre nossas cabeças. Lembrava de que tudo que ela já nos disse, do quanto confiava nele. Mas ao mesmo tempo, me senti grata por minha mãe ter acreditado em mim ao invés do homem que ela amava. Pensei o que teria acontecido se eu tivesse aberto a porta. Pensei no que teria acontecido se minha mãe nunca tivesse acreditado em mim, ou me apoiado.

Percebi que o mundo era muito mais perigoso do que eu havia suposto. Percebi que havia um desejo sexual nos olhos dos homens que até então me eram invisíveis. Me lembrei das vezes que vi esses olhares no meu trabalho como atriz e comecei a lembrar de todos que já sugeriram que eu sentasse em seu colo, inclusive esse namorado dela, me lembrei dos que já se aproximaram com olhares simpáticos demais, só esperando alguma oportunidade para lançarem suas mãos geladas.

Também aprendi uma outra lição valiosa e dolorosa: não podemos confiar em ninguém, ás vezes nem na nossa mãe. Por mais que eu confiei na minha, ela estava errada em confiar naquele cara. A parte feliz dessa lição é saber que temos nossa própria mãe interna. A voz dos nossos instintos que vem com sutis sugestões, acompanhada de seus chicotes corretivos, as emoções.

E não querendo dar spoiler da minha jornada, mas já adianto outra lição que só aprendi anos depois, mas que também está ligado à intuição: Se não damos importância para essa voz, ela te faz sentir solidão. E não adianta a receita usual de procurar alguém lá fora, a voz vai continuar gritando por sua companhia através daquela dor apertada no coração. Até que um dia você vai bater a cabeça na realidade e vai doer tanto que você vai acabar notando que tudo que sempre precisou era olhar mais para dentro de você.


Nunca fale sobre UnicórniosOnde histórias criam vida. Descubra agora