28. Assumindo o problema

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Com o tempo, a primeira coisa que eu pensava ao acordar era: "Tenho que ir para a escola de novo". Depois pensava na próxima obrigação com a mesma lamentação, tentando pensar em outra coisa, tentando me distrair com o celular, comendo um doce para sentir prazer ao invés de tédio. Estranho tédio de uma pessoa cheia de tarefas. Eu pensava que todo mundo que ficava deprimido, emagrecia, menos eu. Sem perceber eu comia para calar minha boca interior. Tudo que eu fazia para me distrair era apenas ruído para não escutar a voz que falava na minha cabeça: "Você está infeliz".

Eu não poderia me sentir assim, eu pensava. Seria muita falta de gratidão com a vida desprezar todos os meus sonhos se realizando após quase 10 anos de trabalho. Eu estava fazendo novela das 8, papel importante, ganhando bem o suficiente para minha mãe não precisar trabalhar e vivermos em uma casa melhor. A mudança para um condomínio fechado na verdade veio do medo que eu estava sentindo de algumas ameaças que recebi pela internet. Não vou falar disso porque jurei para mim mesma que haters não seriam um tópico da minha vida. O ódio existe, o que podemos fazer é nos proteger inteligentemente e ignorá-lo emocionalmente. Mas estou citando isso porque naquela época isso ajudava a compor meu estado psicológico deprimido.

Controlar o que as pessoas pensam de você é um engano que nos seduz toda vez que agimos em função da nossa imagem, eu sabia que precisava me afastar de todas as tarefas, mas ainda sentia como se fosse minha obrigação mantê-las com um sorriso no rosto. Meu corpo se revoltou contra mim através da dor. Eu sei que muitas pessoas podem pensar que eu não tinha motivo o suficiente para sofrer. Outras podem estar falando: "Sua burra, abandona tudo e vá viver sua vida, então". Realmente é possível resolver mentalmente o problema dos outros em segundos. É muito fácil falar para sua amiga que tem problemas com os pais, sair de casa, é muito fácil falar para a mulher que sofre com o ciúme do namorado, terminar o relacionamento, difícil é perceber que não são as situações que trazem o sofrimento, mas sim as relações emocionais que temos com as situações.

Em uma tarde cheia de provas para estudar e roteiros para ler, tive uma crise de choro. Pensei no quão errada eu era para me sentir daquele jeito. Havia crianças abusadas, mulheres humilhadas, pessoas que sofriam nas guerras e gradientes de fome e violência no mundo, como eu poderia chorar e sofrer tendo tantos privilégios? Por mais que eu já soubesse que todos nós sentimos tudo que somos habilitados para sentir independente da situação, e que não existe competição para quem merece chorar mais, ainda assim me sentia uma pessoa terrível por estar me sentindo terrível.

Milena era uma amiga atenciosa e sua alegria me contagiava, mesmo assim eu liguei para Vinícius naquela tarde. Eu sabia que não deveria ligar para ele, assumo esse erro mas não espere que eu o justifique. Nem sempre fazemos as coisas com planejamento ou com responsabilidade pelas consequências de nossos atos, mesmo que dentro de nós haja a nítida certeza de que nada de bom pode vir de uma ligação feita no meio do choro. Por um minuto me esqueci de Renata e pensei em me declarar para Vini, como se o amor romântico fosse a cura para aquela crise existencial.

Vinícius sempre foi um amigo leal, daqueles que deixam o que estiver fazendo se perceber que você precisa de ajuda. Em menos de 30 minutos ele estava na porta da minha casa. Minha mãe só viu meu vulto passando pela sala dizendo: "vou dar uma volta" e nem se importou muito. Naquele dia percebi que eu tinha a liberdade de fazer o que eu quiser, o sonho de toda adolescente, mesmo assim não conseguia sorrir.

— Obrigada por vir me buscar, eu realmente precisava sair para conversar com alguém.

— Eu tive que vir, não entendia nada do que você me falava por telefone, parecia um gato miando de fome.

— Para Vini... peraí, você colocou aparelho nos dentes?

— Sim, Renata me convenceu a ficar bonito. Eu avisei para ela que os dentes tortos eram os únicos empecilhos para eu virar um sex symbol, mas ela disse que aceita os riscos.

— Mas você defendia os dentes tortos? Dizia que eles foram feitos pela natureza e eram perfeitos como eram.

— Sim, ainda penso que há muita pressão para uma beleza padronizada e isso tem relação com a cultura. O que achamos bonito não é beleza de verdade. É subjetivo, como os pescoços estendidos na Tailândia, as mulheres com pés pequenos na antiga China... talvez um dia as pessoas olharão para nossos esqueletos e costumes e pensarão: Que horror! Eles usavam grades de metal para mudar os dentes de lugar, tiravam pedaços do nariz para afiná-los, pedaços de gordura da barriga... que pessoas estranhas".

— Mesmo assim você está mudando seus dentes.

— Você também faz dieta por pressão social e eu não falo nada. Se bem que você anda mais tranquila com isso, até engordou um pouquinho...

— Você está me chamando de gorda?

— O quê? Não... você está bonita assim. Porque as mulheres falam tanto essa frase?

— Não sei, acho que o medo de toda mulher é ser uma gorda. O mundo nos mostra que homem gordo pode ser comediante, bonito por dentro, ou apenas ter problemas na tireóide. Mulher gorda já é desleixada, sem força de vontade.

— Para mim todo mundo poderia ser como é, sem padrão e sem patrão. Foda-se tudo, vamos viver e buscar a felicidade fazendo o que a gente quer.

— Você está bem hippie, Vini. Estilo paz e amor.

— Acho que estou em um bom momento da vida. Sabe, quando eu tinha sua idade, eu era apaixonado pela Renata. Nem acredito que agora estamos namorando.

— Que bom que você está feliz.

Dizem que quando amamos alguém, queremos a felicidade dessa pessoa acima de qualquer coisa. Eu queria muito dizer que minha frase veio do coração, mas eu não estava feliz por ele. Nem sempre somos a encarnação do bem na terra, nós somos capazes de sentimentos mesquinhos como odiar a felicidade de alguém porque essa felicidade não nos beneficia. Por outro lado, me sentia culpada por me sentir assim, como se eu fosse um erro andante da natureza. Olhei para Vinícius e ele me olhava com tanta ternura que me afundei no banco do carro desejando realmente estar feliz por ele.

— Mas estamos aqui para falar de você. Porque estava chorando?

— Me sinto infeliz.

— Então vamos resolver o problema, o que te faz infeliz, necessariamente?

Poderia dizer que vê-lo com Renata me fazia sofrer, mas não haveria nada de bom resultante disso. Nem sempre a verdade deve ser falada, até nisso mentiram para a gente. "Fale a verdade sempre", mas ninguém está preparado para todas as verdades, nem mesmo tem interesse em ouvi-las. As vezes a melhor saída é a omissão. Vinícius não era o centro do meu sofrimento e eu poderia lidar com um problema por vez.

— Eu não quero mais ser atriz.

— Que bom, seu problema tem solução,  logo não é mais um problema. Agora que resolvemos isso, vamos tomar um sorvete.

Nunca fale sobre UnicórniosOnde histórias criam vida. Descubra agora