33.Amizade verdadeira- Parte 1

144 45 74
                                    

Fiquei muito feliz quando li o roteiro e vi as mudanças da minha personagem rumo ao final da novela. O orgulho que sentia de mim mesma disputava espaço com a vergonha por ter demorado tanto tempo para falar o que eu pensava. Impressionante como o medo nos impede de arriscar e depois que rompemos essa barreira, percebemos que grande parte dos problemas existiam somente na nossa cabeça. Inclusive posso dizer que as pessoas me aceitaram muito mais depois que eu deixei de temer pela rejeição delas. Quando percebem que não tem mais poder sobre você, param de tentar te controlar.

Mas não pense que no início será fácil para as pessoas te verem com outras atitudes. Quem sempre te viu como capacho, não gostará de nenhuma nova atitude confiante sua. Os que falavam com autoridade e sempre tiveram seu silêncio confirmativo, não gostarão da necessidade de desenvolver melhor seus argumentos para te convencer, eles continuarão cobrando de você as atitudes que antes os faziam se sentir confortáveis. Mas aqueles que estiverem interessados em uma amizade verdadeira, com respeito e tolerância com a diversidade, se aproximarão ainda mais de você. O melhor é que será por quem você realmente é, sem julgamento dos defeitos e comparação das qualidades.

Numa tarde com Milena, resolvi ser mais livre com ela e expor minha opinião sobre nossa convivência, na dúvida se nossa amizade se manteria com a minha sinceridade. A verdade é que desde que conheci Milena, eu orbitei em volta dela, atraída por sua gravidade estonteante e poderosa. Ela era confiante, exalava um ar poderoso de quem sabia o que estava fazendo e eu a seguia para onde ela me levasse. Talvez por isso ela dava conselhos e esperava que eu os seguisse, como a insistência para que eu desistisse de medicina.

— Amiga, hoje terá uma festa imperdível. Um Dj internacional irá tocar...

- Não posso Milena. Hoje vou estudar na casa da Júlia.

- Miga sua louca, você está de férias do colégio.

- Mas como eu e Julia vamos tentar medicina em menos de dois anos, estamos com um compromisso de estudar todos os dias até lá.

- Você vai mesmo deixar sua juventude passar para perseguir algo tão idiota assim?

- Porque você simplesmente não me apoia? Eu quero fazer medicina e Julia entende isso, mas eu não sei porque você e Vinícius insistem em tentar me empurrar as profissões que deram certo para vocês, ao invés de me ouvirem e incentivarem.

- Eu falo essas coisas porque me importo com você. Amigos de verdade também puxam a orelha de vez em quando.

- Mas parece que você não quer que eu estude porque deseja minha companhia em uma festa...

- Não é por isso. Você é uma atriz, uma adolescente que também gosta de se divertir, uma garota com alma de poeta e com uma sensibilidade difícil de encontrar... claro que eu quero sua companhia. Mas falo essas coisas porque não sei se 6 anos estudando corpos mergulhados em formol e mais mil livros para decorar, doenças para tratar e pacientes para ver morrer, te trarão as coisas que você busca.

- E o que eu busco Milena?

Ela se aproximou de mim e eu fiquei parada, sem entender seu rosto sério e tão perto de mim. Sua respiração quente no meu rosto deixou minha respiração apressada e quando ela tocou meu braço, meu corpo agiu como em um susto.

- Eu te amo. - Milena se aproximou mais de mim e quase pensei que ela me daria um beijo, mas foi um abraço. - Você é como uma irmã mais nova e não quero que quebre a cara.

Me envergonhei por ter pensado por alguns segundos que aquela cena fosse amorosa. Eu, que para todos os efeitos era heterossexual, me vi confusa em uma situação que mais uma vez brincava com minha percepção sexual, enquanto minha amiga bissexual parecia inocente quanto ao nossos corpos que se abraçavam. Para ela eu era uma irmã, e eu ri ao pensar no quão estranho seria confessar naquele momento que eu sentia uma ligeira atração.

- Milena, eu também te amo, você é minha melhor amiga e preciso do seu apoio.

- Eu sei, me desculpa. Eu quero te apoiar, mas eu não quero te ver seguir um caminho só porque as pessoas falam bem dele. Todo mundo aplaude estudante de medicina, todo mundo admira e inveja os médicos, eles mesmos cultivam um ego da porra por causa desse título.

- Mas não quero medicina para agradar ninguém - No fundo eu dizia: "será?".

- Você é como uma irmã mais nova e ao mesmo tempo minha little mama. É uma pessoa responsável, madura, me enche de bons conselhos quando eu peço... até na minha vida amorosa, que é uma bagunça sem correção! Eu não quero que você suma da minha vida.

- Eu não vou sumir.

- Vai sim. Começa estudando para entrar no curso, sem nunca ter tempo para se divertir com os amigos. Depois que entra na faculdade, está sempre estudando para as provas, sempre falando do curso, até que arruma outros amigos estudantes de medicina e todos os antigos amigos se tornam burros que não sabem o nome dos 206 ossos e não sei quantas artérias e veias no corpo humano. Depois de formado em medicina, é como se fosse oficialmente um semi deus, que precisa ser tratado como doutor e cujo rosto se endurece de um sério orgulho de quem se tornou, debochando de todos enquanto se esconde na ideia de que é especial porque supostamente salva vidas.

- Eu não sou e nem serei assim. De quem você está falando?

- Já tive alguns primos que fizeram medicina, alguns amigos, e até uma ex namorada. Foi assim com todos. Fora os malditos psiquiatras que me entupiram de remédios minha adolescência toda.

- Você tem algumas más experiências com médicos e estudantes de medicina. Mas é preciso respeitar as pessoas, mesmo quando as decisões delas as afastam de nós. Nossa amizade é verdadeira, Milena, não vai acabar por conta de uma profissão. Eu te aceito como você é... uma putinha que dorme com todo mundo. E você precisa me aceitar, mesmo que o meu caminho de vida seja diferente do que você gostaria.

- Putinha? Adorei! Sua frígida de uma figa.

- Eu só queria te descontrair um pouco, você estava tão séria. - Milena riu e se afastou.

- Eu vou te apoiar. Se quiser estudar, fazer medicina, casar virgem e virar médica legista, eu vou te apoiar do mesmo jeito.

- Obrigada... mas eu não sou mais virgem, você sabe.

- Aquilo com o téo? Não conta... e já faz tanto tempo que você já deve estar pura e desinfetada daquele ogro.

Eu e Milena passamos uma tarde agradável conversando sobre a vida e o futuro, ela me contava sobre suas aventuras e eu me divertia com o jeito dela de nunca fazer planos sérios com nada e com ninguém. Minha ideia era ser médica, a dela era vender o ateliê e fazer uma viagem de bicicleta pela Europa, mas cada dia ela tinha uma ideia diferente, como se o futuro não importasse tanto assim. Mais tarde ela foi para a festa e eu fui para a casa de Júlia com a estranha sensação de que eu estava fazendo as escolhas erradas. Sabemos que temos que nos esforçar para sermos produtivos, é a regra do mundo, mas então porque a diversão e a procrastinação parecem tão tentadoras?

No final do outro dia, Milena me visitou com uma caixa que ela mesma fez, estampada com algumas fotos nossas e com desenhos de unicórnio. Dentro da caixa havia um jaleco branco e um pesado livro verde de anatomia chamado Sobotta. Dizendo ela, se medicina era importante para mim, ela daria todo o apoio possível. Até hoje guardo o jaleco dentro da caixa, como uma recordação. O livro abri algumas vezes, mas nunca cheguei a usá-lo de fato, talvez nem o faça devido a profissão que escolhi. No final das contas ela estava certa sobre mim, eu não queria medicina, mas o apoio incondicional dela foi importante mesmo assim.

Muitas vezes gostamos das pessoas e os enchemos de conselhos, ou impomos nossa visão da vida e dos fatos. Mas não podemos esquecer que a amizade requer mais apoio do que opinião. As escolhas de cada um só diz respeito a cada um, talvez nem exista o caminho certo, existe apenas caminho. A amizade verdadeira é quando não existe hierarquia ou julgamento.

Nunca fale sobre UnicórniosOnde histórias criam vida. Descubra agora