37.Júlia Mulan

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Impressionante como eu me lembro pouco do segundo ano do Ensino Médio. Foi um ano calmo para o padrão Unicórnio de tarefas e dramas. Apesar dos poucos momentos memoráveis, uma situação até hoje está clara na minha memória, e o Bullying nem foi comigo.

Júlia foi a amiga mais calada que eu já tive. Na sala de aula ela sentava na frente e mal olhava para os lados. Nas tardes de estudo, ela era muito disciplinada, às vezes eu queria ter uma companhia mais preguiçosa para apoiar meus surtos de procrastinação. Ela nunca queria ir nas festas, minha amiga de balada continuava sendo Milena, apesar disso eu sempre chamava Júlia para sair, mesmo sabendo que ela iria recusar. Em uma sexta-feira no intervalo para o lanche, fiz mais uma tentativa:

- Jú, você nunca vai em festas?

- Não gosto.

- Eu não sei como você consegue estudar tanto e nunca sair de casa... eu quero morrer se passo um fim de semana inteiro sem ir pelo menos em uma sorveteria.

-Eu saio para restaurantes com meus pais, vou ao cinema com minhas primas... mas ficar em casa é muito bom também.

- Eu gosto de conhecer pessoas, foi numa festa que conheci Milena, Vinícius... Bem, Vinícius eu já havia trabalhado com ele, então não sei se conta.

- Você fala bastante desse Vinícius.

- Ele é meu amigo, acho que o meu melhor amigo.

- Mas você sente só amizade por Vinícius ou você gosta dele de outro jeito?

- Eu não sei dizer. E você? Gosta de alguém ?

- Tem um garoto... mas também não sei dizer. De qualquer maneira não importa.

- Porque não?

- Sou muito feia para ele.

- Você não é feia, Júlia.

- Minha mãe tem descendência chinesa, meu pai é negro, aí nasci com essa beleza indefinida. Meu cabelo é grosso porém liso, minha pele é morena mas meus olhos são pequenos. Ou seja... feia.

- Você é linda desse jeito, e olhando bem... você parece a Mulan, a heroína que salvou a China!

- Mulan, da Disney? Se fosse assim, eu não seria a única aluna do segundo ano que nunca beijou na boca.

- O quê? Você nunca beijou?

Júlia escondeu o rosto entre as duas mãos e balançou a cabeça. Então permitiu apenas um olho sair para observar se alguém estava por perto testemunhando aquela humilhação para ela. Então levantou o rosto e em uma sinceridade triste, declarou sua verdade:

- Eu gosto do Victor, queria que meu primeiro beijo fosse com ele. Ambos queremos medicina e penso que somos feitos um para o outro, porque também nunca o vejo namorando ou paquerando ninguém. Mas acho que ele me despreza.

- Você gosta do Victor?

- Shh, fala baixo, alguém pode ouvir.

- O victor não fica com ninguém porque ele é insuportável! Ele fica só no grupinho bolsominion dele julgando as meninas como putas ou santas de acordo com a roupa que usa. Sem falar que ele se acha!

- Eu sei que ele é um pouco egocêntrico, mas ele é tão inteligente e charmoso. Sem falar que eu gosto dele ser conservador em algumas partes, eu também não gosto de roupas provocantes e essa libertinagem amorosa.

- Você é muito mais inteligente e charmosa. Você é a Mulan!

- Eu queria tanto que ele me notasse.

Eu não pensei direito quando o sinal tocou e percebi Victor passando perto de nós. Ele estava distante de seus amigos de sempre, quase parecendo agradável:

- Ei Victor, você sabia que a Júlia tem descendência chinesa? Ela não parece a Mulan?

- Mulan? Só se for mula. Hahahaha Jula Mula. - Victor fez um comprimento oriental, juntando as mãos e fazendo uma reverência enquanto ria como se a piada fosse ótima. - Plazer, Jula Mula!

- Jula Mula hahahaha. - Os amiguinhos de Victor apareceram do nada copiando a brincadeira sem graça e deixando Júlia petrificada no meio da sala.

Parecia uma brincadeira boba, daquelas que o professor nem se importou em ver, ao chegar na sala. Simplesmente mandou todos sentarem e começou a copiar sua matéria no quadro. Júlia sentava na frente, então poucos perceberam a lágrima dela caindo no uniforme. Apenas eu, que sentava ao seu lado, percebi. Mas ela não olhava para mim, estava séria. Me senti culpada por indiretamente ser responsável por aquele apelido.

Durante o resto do nosso ensino médio Júlia foi chamada de Jula Mula, depois apenas Mula, apelido dado pelo cara que ela gostava e que realmente a desprezava, pelo jeito. Penso que Victor sempre teve inveja do sucesso escolar de Júlia, pois as melhores notas eram dela e ele no máximo conseguia o segundo lugar.

Júlia se tornou mais fechada ainda, ignorava quando a chamavam pelo apelido, mas dava para ver em seu rosto que aquilo a diminuía. Eu passei muito tempo pedindo desculpas por ter falado com o Victor, mesmo que ela nunca tenha me culpado por isso. De qualquer forma, ela não queria mais falar sobre isso, nem sobre primeiro beijo ou rapazes. Nossa amizade sempre foi um pouco fria, distante... condicionada aos estudos, enquanto eu e Milena dormíamos na casa uma da outra e conversávamos sobre tudo.

Eu sempre quis ter uma amizade mais íntima com Júlia, mas entendo que ela tinha medo das pessoas. Na única vez que ela se abriu e me contou seus sentimentos, eu a levei para um apelido envergonhante de Mula. Às vezes penso nisso e fico triste. Eu não deveria ter interferido.

Engraçado como muitas vezes, mesmo tendo boas intenções, tornamos algumas situações piores. Magoamos, afastamos ou diminuímos as pessoas mesmo sem esse objetivo. É impressionante como nossas boas ou más ações não geram consequências igualmente boas ou más, nem mesmo nossas decisões conscientes nos levam a um final previsível. Viver está muito além de regras, conselhos, previsões e intenções. 

Nunca fale sobre UnicórniosOnde histórias criam vida. Descubra agora