27.Nunca fale sobre a outra coisa

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Não sei dizer quando eu e Milena viramos melhores amigas, tudo aconteceu em um momento confuso da minha vida, de modo que as lembranças não obedecem a uma lógica sequencial ou temática. Quando percebi, o encantamento por Milena se transformou em cumplicidade e a paixão por Vinícius, em resignação. Por um tempo convivemos todos juntos enquanto meus pensamentos focavam na novela. Sucesso de audiência que significava minha reclusão para tentar me proteger da superexposição. Sempre tem alguém com a necessidade de dizer o que pensa de você, ou o quanto o detesta.

Na novela, as cenas da minha personagem giravam em torno dos relacionamentos amorosos, dos problemas familiares e das amizades e inimizades. Como dizem por aí, a arte imita a vida. No entanto, ao contrário da teledramaturgia ou de muitos roteiros por aí, não temos um papel único de mocinho ou vilão, na vida real somos os dois. Cada pessoa é a protagonista de sua própria história, mas os finais felizes só existem para a ficção, na vida real todo mundo morre no final.

Na escola, em casa, nas festas ou no trabalho, eu estava sempre perdida em meus pensamentos, imersa numa melancolia cada vez mais difícil de disfarçar. Eu odiava minha personagem, mas desconfiava que isso refletia meu descontamento comigo mesma. Na televisão eu era uma adolescente em um caso de amor irresponsável, com direito a noite romântica na praia. Na vida real eu estava sozinha, o pior era que eu nem poderia desejar outra coisa pois estar sozinha naquele caso era um alívio. A frase "Melhor só, do que mal acompanhada" só faz sentido quando se esbarra em um Téo da vida.

Em um fim de semana característico, tentando fugir do tédio, Milena me buscou em casa. Mal me cumprimentou quando eu abri a porta do carro e já foi falando:

— Vini e Renata estarão lá.

— Tudo bem Milena, não posso me esconder deles para sempre.

— Mas poderia ser pior. Téo se aproximou de alguns amigos meus e também queria ir para a chácara, mas eu disse que não. A chácara é da minha família e eu decido quem vai ou não.

— Obrigada pelo apoio Milena, realmente se ele fosse, eu não iria mais.

— Eu sei... Aquele idiota e mentiroso andou falando que você deu para ele no jardim daquela primeira festa que nós fomos.

— O quê? Isso é mentira!

— Ele andou dizendo que você perdeu a virgindade com ele.

— Como eu me arrependo de ter namorado com ele naqueles malditos 30 dias.

— Meus primos  já vieram me falar que estão deixando de andar com Téo por que ele não para de falar mal das ex namoradas. 

— Queria nunca ter me envolvido com ele.

— Eu sei, eu também queria ter impedido você de sair com ele, mas eu também mal o conhecia...

— Você não tem culpa Milena, a culpa é minha.

— O pior é que depois da experiência com ele você ficou traumatizada e agora não quer mais saber de relacionamentos. Nem ao menos experimentou um orgasmo. Aquele cretino nem para fazer algo direito!

— Talvez você tenha razão sobre o que me falou esses dias.

—O quê?

— Sobre maturidade. Talvez eu seja nova demais para aproveitar a coisa.

— Sim. Eu só fui saber o que era prazer por volta da vigésima vez que eu fiz. Foi com uma colega de sala quando ela dormiu lá em casa... — Milena fez uma cara safada que me deixou vermelha, ainda mais quando ela me olhou e mordeu o lábio inferior.

— Talvez eu só vou conseguir gostar da coisa se eu fizer com alguém que eu ame.

— Na verdade, não tem como se divertir em dupla se não souber aproveitar sozinha.

Milena notava que eu tinha um pouco de vergonha do assunto. A coisa sempre foi um motivo de desconforto porque soava como algo sujo, errado e pecaminoso. Temos informações conflituosas sobre esse assunto, nos mostram como algo prazeroso, mas também sabemos das perversões e crimes relacionados a ele. A coisa envolve prazer e intimidade, mas também é usado como jogo de poder e humilhação. Como lidar?

— Se você não sentir tesão por si mesma, ninguém irá sentir. É preciso saber aproveitar sozinha antes de passar para a atividade em grupo. Ou dupla, para os mais ortodoxos.

— Que isso, Milena! — Confesso que era divertido ouvir a liberdade dela de sentir e pensar.

— A sexualidade feminina sempre foi um tabu, ou algo direcionado ao prazer masculino. Mas não há nada de vergonhoso em conhecer e explorar o próprio corpo sozinha, acho que vergonhoso é deixar para os homens a responsabilidade de comandar toda a diversão como se eles soubessem o que estão fazendo. Os homens não sabem de nada.

— Eu tive muita vergonha na minha noite com Téo, ele que tomou a iniciativa de tudo. Só de pensar em tentar fazer isso de novo eu me sinto estranha.

— Amiga, você tem que se livrar desse moralismo, senão você nunca vai aproveitar, mesmo que seja em um ambiente de casamento com amor.

— Eu não sou moralista, Milena.

— Eu vejo como você me olha quando eu te falo minhas experiências.

— Eu fico surpresa, mas eu não julgo.

— Você me julga sim.

— Só acho estranho você gostar tanto da coisa. Eu não sei se conseguiria fazer a coisa com uma pessoa só por causa da outra coisa, depois ir embora e nunca mais saber da pessoa.

— Talvez eu tenha um libido exagerado mesmo. Cada um é de um jeito. Olha você por exemplo, uma frígida, mas eu respeito.

— Eu não sou frígida... nem assexuada. Só não quero fazer nada que me arrependa de novo. Eu estou cansada de errar, de me apaixonar pelas pessoas erradas, de fazer a coisa com uma pessoa só porque eu estava com pressa de experimentar ao invés de esperar para fazer com uma pessoa que eu amo e que me ama.

— A coisa não tem a ver com amor. É  algo do corpo. Tem gente que me atrai fisicamente, mas calado, se abrir a boca para falar as besteiras que pensa eu visto minha roupa e vou embora.

— Então um dia eu quero encontrar uma pessoa que me atraia das duas maneiras, coincidindo a química corporal e a intelectual. Eu quero o pacote completo.

Quando chegamos na chácara, Renata e Vinícius já estavam na piscina, sorrindo um para o outro com suas piadas internas, como se fossem um casal ideal. Ele passava a mão pelas costas de Renata e eu queria saber como era estar no lugar dela. Me aproximei sorridente como a ótima atriz que eu era e perdi a concentração do meu ato quando minha aproximação passou despercebida o suficiente para ouvir Vinícius comentando com a namorada: "adorei fazer amor com você hoje cedo".

Todos os dias a vida nos dá um tapa na cara diferente. Nessa época parecia que todo mundo estava aproveitando a vida, coisando, experimentando a outra coisa, se apaixonando e se divertindo. Menos eu.

Nunca fale sobre UnicórniosOnde histórias criam vida. Descubra agora