32.Libertação

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Se não for eu, quem?

Se não for agora, quando?

Se não for por mim, por quem?

Se não for pela minha felicidade, porquê fazer?

Sempre tive uma voz na minha cabeça me dizendo o que fazer, alguns a chamam de consciência, mas quando fecho os olhos e me concentro, percebo que ela é familiar. Algumas vezes parece a voz da minha mãe, as frases são as mesmas. Outras vezes me lembra outras pessoas que tiveram influência na minha vida, desde parentes até colegas de trabalho e amigos. Geralmente a premissa que me fazia obedecê-las era a certeza de que ninguém me entenderia, por isso precisava esconder tudo de original que havia em mim e seguir as ordens de como eu deveria ser. Eu era a garota perfeita com a vida perfeita, e ninguém poderia entender eu sentir tristeza e ter questionamentos.

Nos dias que antecederam minha reunião com o autor e o diretor da novela, eu percebi algo sobre mim. Eu era uma pessoa por dentro e outra diferente por fora, eu atuava o tempo todo. Vocês sabem que eu já tinha percebido isso antes, mas não da maneira que eu percebi naqueles dias de choro trancada no quarto. As recentes férias escolares só me trouxeram o alívio de não precisar fingir no colégio, mas na televisão eu ainda precisava. Nasceu em mim a necessidade de me libertar, falar o que eu penso, ser eu mesma ao invés da pessoa comportada e educada que esperavam que eu fosse. Eu queria parar de atuar pelo menos na vida real.

Mesmo com Vinícius e Milena eu não estava sendo eu mesma, pois nem sempre eu falava minha opinião. Não sei se já sentiram vontade de fazer parte de um grupo ao ponto de não ser a única "do contra", algumas coisas eu omitia para não começar uma discussão. Por isso minhas ideias eram sufocadas pelo medo de ser diferente, ou até mesmo de passar vergonha, "vai que eles estão certos e eu que sou muito ignorante". Pensei muitas vezes diante de outros conhecidos.

Quantas vezes sorri diante de uma cantada ou elogio inadequado, ignorei olhares maliciosos, apenas concordei diante de opiniões preconceituosas e machistas ou fingi tranquilidade quando queria surtar feito a mulher histérica que eu nunca poderia ser? Aonde eu ia, eu reproduzia a pessoa que me ensinaram a ser. Não apenas minha mãe, mas a sociedade, com sua cultura. Percebi que meus problemas de auto imagem, medo de errar, ansiedade a até momentos depressivos vieram de todo esse controle. Mas não controlamos o ser. Um animal enjaulado não pode ser feliz.

No corredor da emissora de televisão, decidi que falaria abertamente minha opinião sobre aquela novela. Eu estava tremendo, os olhos estavam molhados de um choro que teimava em querer aparecer em um momento que eu queria parecer forte. Minha mente me inquietava com a voz cheia de ordens e receios, uma pressão que me fazia querer abaixar a cabeça e apenas concordar e me desculpar e calar a boca. Mas dentro de mim, em um lugar que estranhamente não parecia vir da mente, havia uma coragem e uma sensação de que eu estava certa em ser eu mesma.

Quando chegou a hora de entrar na sala de reunião, minha coragem transbordou em forma de choro. Os dois se levantaram para me receber e abriram os braços, como se eu precisasse de consolo, mas eu recusei.

- Eu estou bem, acho que só preciso chorar um pouco.

- É só uma reunião boba, você ainda é nossa estrela. - O diretor parecia constrangido.

- Sim, só chamamos você aqui para conversarmos sobre o final da novela. Não vamos despedir você, nem nada disso. - O autor estava tranquilo.

- Eu sei, eu sei. É que preciso desabafar e isso é difícil. Preciso ser sincera com vocês.

- É isso que esperamos mesmo. Você é uma atriz maravilhosa e estamos aqui para ouvir você e te apoiar.

- Eu estou escrevendo o final da novela e quero saber se tem algo te incomodando, porque notamos que você está...

- Diferente... - o diretor completou a frase do autor.

- Me desculpe, as última semanas foram as provas finais e eu estava estudando muito... - então me lembrei que estava ali para ser sincera - mas a verdade é que não estou gostando de atuar.

- Você está dizendo que não quer mais ser atriz? Ou que o meu texto está um lixo? - O autor da novela criou uma ruga na testa.

- Um pouco dos dois. Eu estou pensando em dar uma pausa na carreira após essa novela. Confesso também que os últimos textos me magoaram, já que todo mundo sabe que a novela é um pouco baseada na minha vida e naquela briga escolar que eu tive.

- Nesse ponto, isso sempre foi apenas uma especulação, nós nunca confirmamos isso - disse o diretor.

- Sim, foi apenas uma espécie de marketing. O público adora uma fofoca, uma confusão... jogamos com isso um pouquinho.

- Acontece que na novela eu pareço uma adolescente superficial, que só fala sobre namoros, fofocas e moda. O alto das minhas cenas são as brigas com minha arqui inimiga que apronta contra mim, como na cena que ela me provoca para que eu bata nela e seja processada. As melhores falas estão com meus parceiros amorosos, eles que são engraçados e inteligentes.

- É assim mesmo, o núcleo adolescente das histórias são assim: nós falamos sobre o que o adolescente costuma passar: amizades, inimizades, primeiros relacionamentos, questão com a imagem... - O autor voltou-se para sua posição confortável, tentando me explicar o que é ser adolescente, como se eu não fosse uma.

- Acontece que ser adolescente é muito mais do que isso, eu tenho questionamentos religiosos, tenho dúvidas sobre nossas regras morais, nossa cultura, me preocupo com a política, com os problemas sociais, com a forma que lidamos com a economia e com a natureza. Eu também penso sobre meus sentimentos, minhas emoções, questiono meus comportamentos, questiono o motivo do sexo ser tão valorizado, das mulheres serem tão objetificadas, dos homens terem tantos direitos e privilégios. Eu sou muito mais do que os clichês e gostaria que minha personagem também fosse.

- Uau... - Eu deixei o autor sem palavras.

- E tem mais uma coisa que eu gostaria de falar. Estou cansada da rivalidade feminina, não concordo com isso e não quero influenciar meus fãs a continuar com isso. Eu gostaria de sugerir que minha personagem e sua inimiga fizessem as pazes no final, parando de brigar por causa de homem e de influência no colégio. Nós mulheres sofremos muito desde crianças, e na adolescência as cobranças só aumentam, se não estivermos unidas, nunca poderemos alcançar a igualdade com os homens, que ainda não existe totalmente.

Não me lembro de tudo que conversamos naquela reunião, a memória não grava tudo que queremos, até nisso somos limitados. Quisera eu ter uma mente como se fosse um computador, para excluir os arquivos ruins e traumáticos e só manter as memórias dos bons momentos, das situações que fui forte e corajosa, dos dias felizes. Mas uma coisa eu não esqueci, foi de como eu saí daquela reunião: Orgulhosa de mim.

Existem pessoas que se colocam na defensiva e são incapazes de se questionar ou mudar de opinião. Felizmente o autor não era uma dessas pessoas. Ele me prometeu naquele dia que iria pensar sobre o que eu falei e que faria um final digno de uma feminista. Eu confesso que não entendi porque ele dizia que eu era feminista. Depois de um tempo li uma frase que me lembrou muito bem desse dia: "Nunca consegui descobrir exatamente o que é feminismo, só sei que me chamam de feminista toda vez que eu expresso sentimentos que me diferenciam de um capacho" (Rebecca West).

Eu estava mudando e aos poucos tirando alguns medos que eu tinha, como o de falar o que penso, ser chamada de feminista, dizer não para as pessoas, discordar e expressar minhas reais emoções ao invés de apenas acenar e sorrir. Nunca vou me esquecer de quando fui gravar os últimos capítulos da novela, eu me sentia orgulhosa de mim, pois minhas atitudes geraram mudanças na novela que me fizeram voltar a sentir alegria em atuar. E o melhor é que a minha libertação estava só começando uma revolução dentro de mim.

Nunca fale sobre UnicórniosOnde histórias criam vida. Descubra agora