20.Vinícius, Buda e eu

182 57 77
                                    

Depois de dar um soco na menina, liguei para Vinícius. Não foi fácil convencer ele a deixar suas próprias tarefas para me buscar no colégio e me ajudar a fugir da minha mãe e das consequências. Aquele rapaz era escorregadio, não se deixava hipnotizar por minha voz fina e, para muitos, irritantemente melosa. Eu sei, queria ter uma voz sexy como Amy Winehouse, mas nasci com esse tom capaz de convencer muitos rapazes em busca de donzelas em perigo, menos Vinícius.

Eu estava quase chorando, com medo do que iria acontecer comigo. Engraçado como em momentos assim é possível sentir como se o problema fosse maior que a gente, grande o suficiente para nos engolir de uma só vez , por isso o corpo fica em estado de fuga. "Corra pela sua vida", o coração parece dizer por qualquer coisa.

O sorriso despreocupado de Vinícius não me tirou da hipnose do medo, de imediato. Quando entrei no carro, eu respirava ofegante e contava todo o ocorrido de uma vez só, quando ele me interrompeu no meio do relato:

— Bom dia, em primeiro lugar.

— Vinícius, a situação é séria. Minha mãe já me ligou várias vezes e eu não tive coragem de atender. Tenho certeza de que vou ganhar uma suspensão do colégio e não consigo parar de pensar no quanto posso ser prejudicada por causa daquela...

— Calma.

Se você já esteve nervosa e já ouviu alguém te pedindo para se acalmar, então você sabe que isso além de ineficaz é, na verdade, uma invocação ao demônio. Eu estava em um redemoinho de culpa, medo, raiva e dor. Não posso dizer que ainda restavam em mim alguma gentileza e educação.

— O que eu vou fazer agora Vinícius? Aquela vagabunda me provocou e eu agi como uma idiota.

— A primeira coisa a fazer é se perdoar por ter feito aquilo. Depois você pode perdoar a menina pelo acontecimento, e a terceira e mais importante coisa que precisamos fazer é... almoçar.

— Eu não acredito que você está pensando em comida, eu não consigo nem tomar uma molécula de água de tão fechada que minha garganta está com todo esse desastre.

— Eu já sei do que você precisa: do colinho da mãe natureza.

Vinícius parou o carro em frente a um parque público, dava para ver alguns trabalhadores da região deitados debaixo de uma árvore após o almoço. Ele me levou para uma parte silenciosa na beira do lago, por um momento deixei de ouvir meus pensamentos acelerados e repousei minha atenção nos passarinhos e no chacoalhar de folhas.

— Você precisa sentir paz. Vamos abandonar por um tempo esses problemas.

— Eu posso deixar de pensar nos problemas, mas o que eu faço com esse sofrimento que está apertando meu coração?

— No budismo, o sofrimento é o resultado da ganância, do ódio e das ilusões.

— Você é budista?

— Não, apenas um estudante da vida.

— Como posso me livrar do sofrimento então, nobre guru?

— Eu diria para me dar todo o seu dinheiro.

— Seu malandro!

— Estou brincando, é claro, mas tem pessoas que acreditam nos mercenários da religião.

— As pessoas tentam de tudo para se libertar do sofrimento, Vinícius. Vejo muita gente falando que uma pessoa rica e famosa não pode sofrer, mas um dia li um desses ricos e famosos dizendo que queria que todas as pessoas conquistassem toda a fama e a fortuna do mundo para perceberem que a resposta da felicidade não está nisso.

— O primeiro Buda, Sidarta Gautama, também percebeu isso. Ele foi um príncipe que abandonou as regalias do palácio e foi em busca da verdade sobre a vida. Ele percebeu que a fonte de todo sofrimento é o desejo.

— Então é impossível ser feliz. O desejo está na nossa mente o tempo todo.

— Sim, mas compreender isso já é um passo importante. Perceber que nossa mente sofre por causa da ganância de agarrar todas as oportunidades, da aversão ao obstáculo, e da ilusão da ignorância.

— O que acontece se a pessoa rompe com as causas do sofrimento? Ela se torna um buda?

— Se alguém é capaz de quebrar a ligação entre as sensações e os desejos, ela pode conviver com o que é prazeroso sem angústia por mantê-lo, e pode conviver com o desagradável sem a angústia por fugir dele. Talvez ser um buda seja algo assim.

— Você é um buda?

— Não, estou longe de colocar em prática tudo que sei na teoria, não tenho a pretensão de me tornar um monge budista algum dia.

— Para quê?

— Para encontrar a serenidade e o equilíbrio da mente na sua maneira mais pura.

— Como eu queria ser assim! Mas de acordo com você, querer isso já gera sofrimento.

— É por isso que existe a meditação. Eu gosto porque me ajuda a focar no presente, no aqui e no agora.

— Você medita?

— Todos os dias.

— Nossa, estou surpresa. Quanto tempo você costuma meditar?

— As vezes me sento no chão do meu quarto. Fico submerso naquele momento por um tempo que me parece horas. Então me levanto, me sentindo uma pessoa iluminada. Quando olho para o relógio, vejo que só passou dez minutos.

Eu ri, apesar dele ser inteligente, ele sempre conseguia mesclar seu conhecimento com uma humildade desconcertante.

— Acho que não consigo meditar nem 10 segundos, minha mente não para.

— Todo mundo é assim, preso na realidade mental fictícia. Nossa mente funciona o tempo todo e quando não há nada para ser focado, a mente cria simulações, que são como filmes passando na nossa cabeça com situações simuladas. A fantasia geralmente possui segundos de duração, mas é constante, sempre nos tirando do momento presente e nos jogando para problemas que talvez nunca irão ocorrer, alguns como: "Ele deve estar pensando isso" ou "fulano vai fazer isso se eu fizer aquilo".

— Realmente, é desse jeito. Me sinto uma escrava dos pensamentos, eles não param nem me obedecem.

Estávamos sentados em frente ao lago quando fizemos a minha primeira sessão de meditação. Eu prestava atenção na voz dele com meus olhos fechados, obedecendo quando ele me mandava inspirar e expirar, prestando atenção no movimento que a respiração fazia no meu abdômen. Minha concentração não durou muito, logo minha mente fugiu para outro lugar, mas Vinícius falava que isso era normal, pois é necessário tempo para treinar a mente.

Naquele dia aprendi que é possível conhecer melhor a mente e domesticá-la. Nascemos nesse mundo louco, sem roupa e sem conhecimento, jogados em culturas limitantes e regras que não dependem de nossa opinião, mas o pior é que nascemos sem nenhum manual de nós mesmos. Ganhamos da evolução uma máquina poderosa, mas que não sabemos como funciona, o cérebro é uma incógnita para a ciência até hoje, mas podemos aprender e testar todas as funções dele. Naquele dia eu percebi que posso me conhecer muito melhor do que apenas compreender minhas reações e comportamentos, posso alterá-los, posso conquistar liberdade dentro de mim e me libertar das prisões emocionais e mentais que me controlam.

A cabeça não tem manual de instruções, mas temos conhecimento acumulado para estudar e anos de vida para testar. A partir daquele dia comecei a ver a vida como uma experiência, não sei todo o potencial e todas as funções do meu cérebro mas quero apertar todos os botões e testar todas as combinações. Porque meu caro leitor, se a felicidade não está lá fora, está dentro de nós, então é mais possível ser feliz fechando os olhos do que buscando uma lista de coisas que nossa mente inventou.

Cheguei em casa e encontrei minha mãe louca, falando que as revistas de fofoca estavam ligando o tempo todo e que precisávamos procurar um advogado urgente. Eu tinha uma suspensão de 3 dias para assinar e um relato de confissão e arrependimento para repetir inúmeras vezes, mas apesar de toda aquela situação angustiante, eu ainda estava surpresa pelo poder daqueles minutos de paz no parque. Fui para o meu quarto, cansada de tanto ensinamento da vida, minha primeira conquista de paz independente foi dormir a tarde toda.

Nunca fale sobre UnicórniosOnde histórias criam vida. Descubra agora