40.Quase no final

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Engraçado como nossas fantasias se distanciam da realidade, e quando o futuro que sonhamos se torna nosso presente, ele nos surpreende e nos faz perceber como já fomos boba. De tempos em tempos compreendo minha ingenuidade anterior, e penso se algum dia deixarei de aprender e progredir, se algum dia terei experiência o suficiente para não me surpreender com o futuro. Existe teto para o que podemos ser?

Sempre tive a impressão que meu aniversário de 18 anos mudaria tudo ao meu redor. Vergonhosamente confesso que imaginava Vinícius se declarando para mim como presente de aniversário, imaginava uma festa luxuosa e quem sabe fazer faculdade em outra cidade... ou país. A gente sonha alcançado as estrelas, mas trombamos nos asteroides.

Meu aniversário de 18 anos foi em meio a uma forte gripe, com apenas parentes, Vinícius e Milena ao redor de um bolo pequeno de chocolate que nem consegui sentir o gosto. O final do terceiro ano da minha fantasia, teria uma emocionante festa da turma, mas quando chegou essa época, estávamos cansados e frustrados com o desempenho nas provas e com as novas responsabilidades sobre nós. Tudo parecia menos animador do que nos sonhos da adolescência.

Os pais gostam de falar frases do tipo: "Agora você é maior de idade, precisa trabalhar...porque eu na sua idade...". Minha mãe não falava isso, mas adorava criticar minhas escolhas de modo que a ideia de morar longe também me era convidativo. Ninguém gosta dos mil e um conselhos parentais, e quando digo conselhos, gostaria mesmo é de falar projeções. Como dizer com jeitinho que as ideias de futuro dos mais velhos não se aplicam a nós? Como explicar sem magoar, que o futuro é nosso e podemos fazer o que a gente quiser? Por outro lado, a vida não tem delicadeza para nos estapear e dizer que nem tudo será como a gente quer.

Um Unicórnio disfarçado de humana, prestes a começar a faculdade... e solteira. A ideia de que Vinícius não se declarava por mim por causa da minha idade, caiu por terra com a maioridade. O antigos fãs sumiram, cada vez menos pessoas perguntavam por mim, e quando perguntavam, era para saber se eu passei para medicina. A verdade é que nem tentei, estava decidida em cursar Psicologia, e mesmo se tivesse tentado, eu iria fracassar pois minha pontuação não seria o suficiente e não tenho vergonha disso. Não posso ter vergonha de mim, não mais.

Eu estava feliz por começar a estudar em uma faculdade paga e bem conceituada. Meus colegas do colégio comemoravam a entrada na faculdade pública, apesar da alta renda deles. Nosso colégio era particular e muitos ali poderiam pagar uma faculdade privada de medicina, perfeitamente. Eu não tenho muito dinheiro, mas é o suficiente para arcar com meu curso inteiro e tenho orgulho de não pegar a vaga pública de quem realmente precisa.

Júlia conseguiu passar em Medicina na federal, eu fiquei feliz por ela, pois é raro as pessoas que merecem conseguirem o que querem. Ela se esforçou, sua família se sacrificou financeiramente para que ela pudesse estudar em bons colégios e realizar o sonho dela de ser médica. Infelizmente Victor também passou para medicina na mesma faculdade. Eu vi isso como alerta pois ele era uma pessoa sem empatia alguma, que chamava minha amiga de mula sendo que ela nunca o maltratou. Imagina a empatia com pacientes doentes? Júlia, no entanto, demonstrou gostar da novidade através de um telefonema:

- Você acredita que eu e Victor vamos fazer faculdade juntos? Eu sempre pressenti que nosso destino estava cruzado de alguma maneira.

- Jú, ele quem começou o bullying com você através daquele apelido ...

- Eu sei, mas era porque ele me via como rival. Agora acabou a competição, ele até me chamou para a festa da turma.

- Festa da turma?

- Sim, vai ser na chácara da família dele. Eu vou dirigindo minha motocicleta nova e lá vou estrear a garrafa de tequila que meus primos me deram no meu aniversário.

- O quê? Você ganhou uma moto? Que tudo! Agora, se você vai dirigindo, é melhor não tomar essa tequila hein.

- Estou pensando em dormir lá, como a maioria já confirmou. Vamos comigo? Eu te coloquei há dias no grupo da festa no whatsapp.

- Nossa, de onde vem essa animação toda? Você nunca gostou de festas... muito menos de dormir fora.

- Agora é tudo diferente, sem falar que foi o Victor quem me chamou e ele pareceu interessado em mim.

- Entendi... você gosta mesmo daquele garoto. Eu não sei se vou poder ir com você, porque marquei cinema e jantar com Vinícius e Milena amanhã a noite. Mas tem as outras garotas da sala para ir com você... ou a festa será só com aquela turminha do Victor?

- A meninas vão, na verdade só falta você.

- Hum... mas ninguém me chamou, será que eu deveria ir?

- Claro que não chamaram, você não entra nas redes sociais e a última vez que esteve online no whatsapp foi mês passado. Como vão te convidar desse jeito?

- É, eu sei... mas poderiam me ligar, como você fez.

- Ninguém mais telefona para ninguém, não sei como você conseguiu desconectar dessa maneira ao ponto de me fazer te ligar.

- Eu precisava disso. Às vezes o mundo virtual nos suga a vitalidade, nos deixa desconsertada e nos faz sentir errada com nossas escolhas. Pela internet destilam ódio disfarçado de opinião, como se fosse um direito ofender.

- Eu te entendo, depois daquela matéria te ridicularizando por não conseguir medicina, e dos comentários na internet, você precisava de um tempo mesmo. Impressionante como julgam sem saber da história.

- Mas você tem razão, não posso me desconectar de meus colegas, sumir e ainda querer fazer parte da vida deles. Eu vou na festa e vou voltar para as redes sociais!

- Isso aí. A nossa vida está apenas começando. Eu sinto como se a tímida e boba que eu fui no ensino médio, já pudesse ser enterrada. Agora posso ser o que eu quiser... e quero ser mais descolada, como você.

- Descolada, eu? Estou mais para deslocada. Se quer aprender a ser amigo de todo mundo e viver a vida adoidado, melhor andar com Milena e Vinícius. Aqueles dois me divertem muito. Vou falar com eles sobre trocar o cinema para amanhã a tarde, assim podemos jantar juntos mais cedo para eu ir na festa. Você poderia vir com a gente no cinema.

- Não posso, eu tenho que estu... desculpa, velhos hábitos. Quer saber? Eu vou sim! Eu quero viver a vida.

- Você está diferente, uma nova Júlia muito mais animada... gostei!

No outro dia de manhã, comecei a pensar no quanto alguns momentos são importantes para nossa transformação e percepção da realidade. O simples fato de terminar o Ensino médio e começar faculdade, deu coragem para Júlia tentar mudar e ser a pessoa que ela gostaria de ser. Por outro lado, pensei se tais mudanças são mesmo possíveis. Há como fugir da nossa natureza em prol de uma insatisfação com nossa personalidade? Ela é mutável?

Eu queria ser mais audaciosa e demonstrar para Vinícius que eu gostava dele. Isso também parecia contra minha personalidade tímida e meu jeito seguro de levar minha vida, como poderia arriscar uma amizade em prol de um desejo? Mas assim como Júlia, pensei que o momento parecia favorável para novos hábitos e novas atitudes. A vida estava mudando, como não mudar junto? A personalidade pode ser imutável, mas as escolhas não podem ser as mesmas, senão nunca teremos resultados diferentes.

No final daquele dia, o mundo pareceu um lugar mágico novamente, pela primeira vez não me vi como um solitário Unicórnio alienígena e incompreensível. Senti como se todas as histórias açucaradas de romance fizessem sentido, e por isso agradeci a mim mesma pela coragem de arriscar.Não foi como imaginei, as coisas nunca são. Mas surpreendentemente, foi melhor do que na minha imaginação.

Nunca fale sobre UnicórniosOnde histórias criam vida. Descubra agora