Capítulo 35 - Preconceitos.

77 4 9
                                    

"Não tenho preconceitos,
odeio a todos igualmente."

George Bernard Shaw


Lucas corria com a sua pá verde sobre a areia molhada do condomínio Amores. Chovera na noite anterior e se Olga o pegasse manipulando os pequenos grãos que escorregavam por seus dedos enquanto tentava formar um castelo arrumaria um discurso sobre todas as infecções possíveis que poderia lhe assolar apenas por estar com as mãos na areia.
Elisa o observava brincar. Com todos os problemas que envolveram a saúde do menino desde que nascera nunca teve a oportunidade de brincar livremente porque o medo de Olga de que adoecesse o impedia de ter uma infância normal como qualquer criança de sua idade. Ela observou também a senhora que acompanhava uma garotinha com belos cabelos longos adentrar o play e aproximar-se de Lucas para brincar.
A senhora que fitava curiosa estava usando chinelos de dedo, um short jeans e uma camiseta lilás com respingos de água um pouco abaixo dos seios. Seus cabelos castanhos estavam desarrumados como se tivesse acabado de acordar e suas não estavam feitas tão pouco, pintadas. Seus olhos pretos quase não se mostravam em meio às olheiras que trazia em seu semblante.

_ Oi! -cumprimentou Cristina ao aproximar-se do banco.
_ Oi! -respondeu Elisa- Eu não te conheço. Você é a babá daquela menina?

Cristina lançou os olhos para Anabela que brincava com Lucas na caixa de areia. Teria ela se referido a outra criança?

_ Não. Eu sou mãe dela. -afirmou.
_ Então você mora aqui.

Os olhos de Cristina correram toda silhueta da mulher sentada no banco. Ela usava um vestido longo de cetim em cor azul. Seus pés eram cobertos por uma sandália de salto em cor prata. Cristina conseguiu ver as pedras brilhares sobre a haste que passava por seus dedos deixando à mostra as unhas pintadas em vermelho. Era uma mulher fina. A forma como cruzava as pernas e posicionava as mãos sobre o encosto do banco demonstrava que tinha requinte.
          Seus pulsos eram enfeitados por pulseiras douradas, com certeza de ouro e seus dedos tinham anéis chamativos. Seus cabelos pretos até o ombro mostravam os brincos em pedras azuis e em seu pescoço a mesma pedra, só que em um tamanho menor segurada por um fino cordão de prata.

_ Moro. Você deve ser a nova vizinha, Elisa. -constatou Cristina por fim.

Os pêlos do corpo de Elisa se arrepiaram com o olhar da senhora sobre a sua pessoa. Estava com medo e com nojo.

_ Sim e você quem é?
_ Eu sou Cristina, mãe da Mariane. Seu filho foi à festa de 15 anos da minha filha. -disse Cristina com um sorriso simpático.
_ Ah, sim. Você é a esposa do professor bêbado.

O coração de Cristina pulsou acelerado diante da frase de Elisa e seu semblante que mantinha um sorriso foi desfeito dando lugar à tristeza.

_ Eu fiquei sabendo o que aconteceu na festa. -completou Elisa.
_ Ele não fez por mal. -justificou-se Cristina.
_ Entendo. Não deve ser fácil seguir a carreira de professor. Só a bebida para ajudar. É uma profissão muito ingrata.

Cristina sentiu o seu corpo palpitar em raiva. Profissão ingrata? O professorado não tinha nada de ingrato. Foi graças a ele que Rogério manteve a família em um condomínio de classe alta por 16 anos.

_ Não existe profissão ingrata, senhora. -falou ela com firmeza na voz.
_ Claro que existe. Com o salário de professor não há como ser elite. Acho até curioso que consigam morar e arcar com as despesas de uma casa em um condomínio como esse.

Os olhos de Cristina encheram-se de lágrimas. Doeu! Doeu no fundo da alma todas as palavras proferidas pela mulher a sua frente. Cristina não pertencia a elite do condomínio e sabia disso. A sua casa era a mais simples de todas. As suas roupas não eram etiquetadas por grifes. Seus sapatos não comportavam pérolas e seu cabelo já apresentavam alguns fios brancos por não frequentar salões de beleza com a mesma frequência que as moradoras sempre impecáveis.
Também não tinha carro do ano e muito menos, importado. O único carro que tinham, um uno fora vendido há alguns meses para continuar a manter as contas da casa. As compras no mercado não tinham itens caros e ela sempre procurava por promoção. Sempre detestou o desperdício, habito comum entre os moradores. Crianças já chegaram a descartar vídeos-game e celulares em perfeito estado no lixo do condomínio por terem ganhado outro mais novo no aniversário ou no natal. As filhas nunca puderam ter um vídeo game de "lançamento" como chamavam. O celular de Mariane já faz dois anos que não troca e Anabela sempre pediu a mãe que pegasse um dos vídeos-game depositados na lixeira. Rogério nunca permitiu que tal atitude fosse tomada. Não eram mendigos para precisar de esmolas.
Por 15 anos Rogério conseguiu a base de economias manter a sua família em um condomínio de classe alta. Não que isso fizesse diferença para ela. Cristina nunca se importou com classe social, só queria morar em um lugar seguro para que pudesse criar as filhas em meio a tanta violência no Rio de Janeiro. Rogério sempre foi o elitista. Sempre querendo mostrar para todos algo que não era e um dinheiro que não tinha. Comprava roupas caras para que fossem bem apresentáveis nos eventos sociais do colégio que trabalhou. Às vezes resvalava nas próprias compras. Deixavam de comprar uma guloseima ou outra para economizar. O que comiam não podia ser mostrado.
As viagens para fora do país era um sonho. Rogério preferia ocupar-se em mostrar para todos o quanto pareciam pertencer a um grupo que não chegava nem aos pés da realidade que tinha ao invés de viajar com a família em férias.

O milagre de uma lágrima - Livro IIOnde histórias criam vida. Descubra agora