A cruz de ouro e prata foi trocada por uma muda de roupa nova, uma mochila de pele de coelho, pão de aveia, carne seca, uma navalha, tinta e uma fina pilha de papel em couro. Este era o mais novo tesouro de Friedrich e também tudo o que lhe restava.
Não sabia que rumo tomar, pois não é como se tivesse tido oportunidade de pensar nisso antes de escapar. Contudo, decidiu por ora seguir Loki pela Grã Bretanha até que descobrisse o que fazer. Por um momento, cogitou se instalar em algum feudo e começar novamente, mas logo descartou essa opção por medo que aquilo que acontecera no mosteiro se repetisse outra vez. Também não acreditava ser capaz de viver sozinho em alguma terra de ninguém, afinal não sabia lutar para se proteger e não tinha ideias para se sustentar.
Friedrich não estava acostumado com aquela vida tão instável. Mesmo antes de viver no mosteiro se acostumara com a fartura da colheita e a miséria do inverno, uma rotina simples e intocada. Haveria de se acostumar com a vida nômade, ou descobrir outra forma de tocar a própria vida sem que sofresse quaisquer riscos.
Ao menos o homem pagão não parecia se importar com sua companhia, na verdade até disse que sentia falta de ter alguém que o acompanhasse na vida de peregrino. Loki lhe contara que durante estes anos ele tivera as mais diversas companhias, que o acompanharam durante dias ou meses.
– Sabe esta minha espada enferrujada e sem corte? – Indagara mostrando a lâmina machucada pelos anos. – Ela pertencera à um grande amigo, nós viajamos juntos por quase dezoito meses. Joshua era um velho cavaleiro que resolveu abandonar a brutalidade quase no final de sua vida, deixando tudo para trás e decidindo se encontrar caminhando pela estrada. Um pouco antes de nos separarmos ele me deu sua arma, dizendo que eu era como um filho que ele nunca teve. Por isso, mesmo que eu pudesse trocá-la por uma machadinha menos ofensiva, porém mais eficiente, não sou capaz de me desfazer dela. É como se sua força ainda estivesse comigo.
Esta era apenas uma das muitas histórias de Loki. O druida era mais interessante que muitos livros que Friedrich havia lido, com tantas tramas e personagens que por vezes duvidava que todas fossem realmente histórias reais. Por isso evitava falar de sua antiga vida, a não ser que o outro lhe perguntasse algo, pois por muito tempo apenas seguiu uma mesma rotina que perdurara diversos anos.
Não obstante, era um assunto do qual Friedrich não gostava de remoer.
Friedrich por vezes se sentia receoso e condenado por escolher um pagão como companhia. Mesmo não conhecendo Loki por completo, já tinha a consciência de que ele não era do tipo de pessoa que se convertia fácil, o que tornava aquela situação ainda mais difícil na cabeça do monge. Sentia-se andando ao lado do próprio diabo e temia por sua alma e pela dele, afinal podia ver que Loki não era má pessoa – ou sua bondade seria o pecado tentando lhe iludir? – e frequentemente apenas ficava imaginando a danação no purgatório, sendo devorado pelas chamas.
Contudo, mesmo tendo a ciência de que Loki não poderia ser salvo, ainda sentia que sua convivência com ele não seria capaz de afetar a forma imaculável de sua alma, pois mesmo tendo saído do mosteiro continuava sendo um bom cristão. Tentava se lembrar dos trechos bíblicos que tanto lia e copiava em seu antigo ofício, rezava ao menos seis horas por dia, respeitava a autoridade de Deus e a Igreja e procurava ir todos os domingos a missa caso parasse em alguma vila. Não havia o que temer.
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Ode aos desafortunados
Historical FictionDISPONÍVEL AGORA NO AMAZON KINDLE VENCEDOR DO WATTYS 2020 na categoria Ficção Histórica. Um andarilho pagão luta diariamente para sobreviver na Inglaterra do século XIV. Vivendo como um curandeiro e sempre escapando dos olhos do clero, nem mesmo as...