Não havia mais vestígios de neve, um vento sôfrego pelo fim do inverno percorria as árvores que começavam a despertar suas folhas aqui e ali, onde a terra se recuperava aos poucos com a grama de cor amarelada manifestando sua resistência. A estrada que percorriam era sinuosa, com o caminho já apagado pelo tempo de desuso, repleta de descidas com inclinações horripilantes, recheada de pedras soltas, apenas esperando por um deslize de qualquer viajante mais desastrado.
– Como consegue olhar para essa coisa e descer ao mesmo tempo?! – Loki questionou incrédulo, de braços estendidos para se equilibrar e calculando cada passo que dava. Friedrich estava vários passos à frente, já tendo percorrido o caminho mais difícil mesmo mal olhando para o chão, já que estava muito ocupado lendo diversas folhas de papel que ele próprio havia escrito.
– Equilíbrio e paz de espírito. – Respondeu sem tirar os olhos da caligrafia impecável. Loki tropeçou em uma pedra, dando três saltos desajeitados antes de chegar ao solo firme.
– O que tanto escreves afinal? – Questionou dando passos rápidos para conseguir acompanhar Friedrich. O loiro o encarou surpreso, revelando um sorriso mostrando todos os dentes que sempre escondia.
– Pensei que nunca perguntaria! – Friedrich disse empolgado, esticando o pescoço com certa arrogância que fez Loki revirar os olhos inconscientemente.
– Nunca tive motivo para fazê-lo. Contudo, agora quero entender o que faz você ficar tão vidrado com os próprios rabiscos. – Disse satírico, mas na verdade por todo esse tempo estivera curioso para saber o que Friedrich escrevia. Só não tinha o feito até aquele momento por não se sentir à vontade, pois se envergonhava da própria ignorância quando se comparava ao outro que era letrado.
– Pois bem. – Friedrich retirou o capuz que cobria sua cabeça, fazendo os olhos azuis se encontrarem com os verdes. – Eu fazia parte da Ordem Beneditina, e como muitos de meus irmãos, era um copista. Resumindo a ode, eu frequentemente buscava por novas receitas de tinta na biblioteca do mosteiro. Como sinto falta daquele lugar! Eu afundava no meio de todas aquelas letras, às vezes acordava pela madrugada e saía escondido apenas para conseguir passar mais tempo aprendendo sobre o mundo. Duvido se hei de encontrar um lugar com tanto conhecimento acumulado, só se visitar Roma ou até mesmo Paris algum dia... Oh sinto muito, perdi o curso da história! Continuá-lo-ei...
Loki sorriu ao ver Friedrich tão acalorado, apreciando a forma como o outro dividia seus gostos e ambições com tanta espontaneidade. Era um tanto raro vê-lo daquela forma, fazendo Loki se encontrar quase hipnotizado pelo seu olhar alegre, diferente da constante expressão taciturna que ele carregava.
– Não consigo vê-lo como um rebelde saindo às escondidas pela noite, mesmo que seja meu companheiro. – Loki comentou fazendo com que o outro soltasse um breve riso, como se nem ele próprio acreditasse.
– De tanto revirar aquelas estantes acabei encontrando alguns textos alquímicos perdidos no meio da poeira. A grande parte era de difícil compreensão, com ideias mirabolantes que eu não sabia distinguir a verdade dos simbolismos. Contudo, me despertou um interesse ávido na manipulação dos metais e das reações dos elementos da natureza. Iniciei assim a anotação de minhas próprias ideias e a fazer alguns experimentos, mas infelizmente tudo isso acabou ficando no mosteiro. Agora o que me resta é apenas anotar aquilo que ainda tenho gravado em minha memória e talvez um dia eu consiga retornar para o ponto onde alcancei. – Friedrich dizia isso com um olhar repleto de júbilo enquanto o druida o ouvia com atenção.
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Ode aos desafortunados
Fiksi SejarahDISPONÍVEL AGORA NO AMAZON KINDLE VENCEDOR DO WATTYS 2020 na categoria Ficção Histórica. Um andarilho pagão luta diariamente para sobreviver na Inglaterra do século XIV. Vivendo como um curandeiro e sempre escapando dos olhos do clero, nem mesmo as...