Não havia mais o medo do toque da morte naquele recinto, apenas o assombro e indagações frente àquele acontecimento tão único e surpreendente, um suspiro de esperança no meio da dor. Com as mãos escondidas pelas luvas de couro, os médicos checavam as mucosas dos olhos, a textura da pele, as feridas a cicatrizarem e se maravilhavam com o que tinham diante de si, indagando estupefatos uns aos outros como aquilo havia sido possível?
Era uma jovem donzela que parecia ser muito mais velha que seus dezesseis invernos, antes por conta da vida difícil no campo, mas que agora se tornara ainda mais acabada pela terrível moléstia que a assolou. Os olhos azuis eram fundos, com o rosto quadrado e ossudo, tomado por uma palidez cadavérica e de profundas olheiras, o cabelo castanho era fino e quebradiço, oleoso por conta da sujidade. Seu corpo era uma finura, parecendo que poderia desaparecer caso se escondesse mais no cobertor que usava enrolado para proteger-se do frio. Quem olhasse para ela, pensaria que com um sopro acabaria desmontada feito uma boneca, mal acreditando a gloriosa batalha que ela havia sido capaz de travar e que tantos não foram capazes de vencer.
Pois Clémentine havia sobrevivido à peste negra.
– Foi dado algo de diferente à ela? – Siméon de La Touche, um dos médicos mais velhos do grupo indagou enquanto a examinava, tendo desenrolado a manta que cobria parcialmente seu rosto e revelando o rosto redondo e de barba branca bem desenhada.
– Os mesmos unguentos para dor e febre que já demos à outros, nada mais. – Claude respondeu tão estupefato e confuso como todos ao redor da jovem.
– Certeza que era realmente a peste? – Onfroi, o boticário, indagou cético.
– Se possuía os bubões, não há de ser outra coisa. – Siméon respondeu. – Temos as provas. Permita-nos Clémentine?
A garota assentiu em silêncio e, um tanto constrangida, ergueu a barra do vestido e da anágua a esconder sua nudez o bastante para que pudessem ver seu torso, sendo possível constatar as manchas de peste cicatrizando-se e começando a secarem, mas ainda tendo um pouco da cor escura que tanto caracterizavam a mácula. Não havia dúvidas da fonte daquelas cicatrizes.
– De alguma forma a doença não chegou ao seu ápice, dessa forma tornou-se mais fácil de combatê-la. O seu corpo foi capaz de impedir um monstro terrível, mocinha, és mais forte do que pareces. – Loki tomou a palavra por fim, com a garota dando um sorriso curto após ajeitar-se. Ouviu-se alguns murmúrios dos médicos, cada um exprimindo suas ideias e hipóteses acerca do que havia acontecido. Mas a palavra que era mais fácil de ter a resposta em suas bocas, era a de um milagre.
– Abençoado seja nosso Senhor, que com Vossa misericórdia trouxe vida mais uma vez para um de seus filhos. – Padre Amédée declarou, fazendo quase todos os presentes realizarem o sinal da cruz e recitarem "Glória Patri''.
– Quer dizer que agora posso voltar para meus irmãos e minha mãe? – Clémentine indagou ansiosa ao líder religioso.
– Retornará hoje como uma nova pessoa, minha filha, pois fora abençoada com a defesa da grande peste.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Ode aos desafortunados
Historical FictionDISPONÍVEL AGORA NO AMAZON KINDLE VENCEDOR DO WATTYS 2020 na categoria Ficção Histórica. Um andarilho pagão luta diariamente para sobreviver na Inglaterra do século XIV. Vivendo como um curandeiro e sempre escapando dos olhos do clero, nem mesmo as...