A ardência depois dos cortes podia ser ainda mais dolorosa do que o vergão em si, contudo, era isso que fazia Adrian sentir-se melhor. Daquela forma apenas se concentrava nas próprias feridas, esquecendo as dores que estavam na alma, mergulhando no próprio sangue ao invés dos tormentos dentro de si, no qual por um breve instante era capaz de sentir paz.
Por um breve e muito curto instante. Então tudo retornava.
– Flagelista estúpido... – Rosnou para si mesmo, jogando a lâmina longe que tilintou no chão de pedra, escondendo o rosto nas próprias mãos, deixando o sangue pingar no chão e em seu hábito.
Já fazia semanas que não realizava tais práticas, onde mesmo que cada dia fosse uma luta, chegou a pensar que estava melhorando. Queria causar uma boa impressão nos monges dali, desfazer com o tempo os boatos sobre sua pessoa. Mas mais uma vez, Adrian havia falhado. Sentia-se péssimo por isso, onde, de forma quase sarcástica consigo mesmo, tinha vontade de se torturar ainda mais.
Não podia deixar que descobrissem sua reincidência no vício, por isso, mesmo que aquela ânsia diabólica ainda sussurrasse em seu ouvido para que continuasse e assim sentir-se bem mais uma vez, Adrian conteve-se e tentou, da melhor forma que pôde, limpar seus rastros.
A maior parte de pano e tecido extra que tinha acabou usando para limpar as feridas mais salientes dos braços, mas não possuía o bastante para estancar todos os cortes. A simplicidade das celas não o favorecia com muitos suprimentos, obrigando-o a ter que arriscar procurar pelos armazéns do mosteiro por bandagens, tendo que segurar alguns tecidos avulsos nos braços enquanto percorria os corredores escuros.
Andou de forma cautelosa em direção à uma das dispensas, mas deteve sua caminhada ao ouvir uma movimentação estranha vinda de lá. Começou a dar passos largos e silenciosos como os de um felino, curioso e ao mesmo tempo temendo o que raios acabaria descobrindo. Sabia muito bem que depois do toque de recolher um monge só sairia de seu claustro se fosse para fazer algo da qual não deveria. Fosse algo banal como nas vezes que teve de expulsar irmão Friedrich da biblioteca a ler livros proibidos, ou mais problemáticos como quando frei Aedan pulava as janelas para se encontrar com meretrizes.
Contudo, não foi um frade quem ele encontrou.
Adrian refletiu se deveria ou não fazer algo quanto aquilo. Sendo a força de impulsividade e revolta em pessoa, teria feito com certeza. Porém, já havia sofrido muitas consequências por se meter onde não era chamado, e por um instante hesitou. Só por um instante, pois nem no Céu ou no Inferno ele seria capaz de simplesmente aceitar um padre a revirar o território dos beneditinos!
– Já não basta o que roubam do povo, agora hei de tirar dos frades também?! – Disse de forma ríspida, tentando conter o tom para o mais baixo que conseguia. Se não estivesse na situação que estava, provavelmente faria questão de acordar o mosteiro inteiro para ver o sacrilégio diante de si!
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Ode aos desafortunados
Ficção HistóricaDISPONÍVEL AGORA NO AMAZON KINDLE VENCEDOR DO WATTYS 2020 na categoria Ficção Histórica. Um andarilho pagão luta diariamente para sobreviver na Inglaterra do século XIV. Vivendo como um curandeiro e sempre escapando dos olhos do clero, nem mesmo as...