A lógica era simples, apesar de duramente cruel: se parassem e desistissem de continuar, padeceriam. Por isso mesmo sem grandes perspectivas e exaustos pela fome e caminhada sem destino, os dois companheiros lutaram com as poucas armas que possuíam para sobreviver.
Loki poderia ser um bom caçador, e Friedrich ter muita habilidade na pesca, mas estas não deixavam de serem atividades guiadas muito pela própria sorte. Conseguir mais que uma refeição por dia era difícil, mas ao menos era uma sustância que poderiam manter diariamente para conseguirem seguir em frente.
O plano, num primeiro momento, era procurar por vilarejos que não parecessem saber dos boatos acerca de Loki, lugares isolados ou até mesmo os ditos burgos que estavam começando a tornar-se mais frequentes naqueles tempos. Quiçá conseguissem algum trabalho, nem que fosse algo temporário que por vezes era oferecido mesmo a colheita já tendo passado, onde por mais que temessem ficarem presos no sistema feudal, ainda não possuíam melhores soluções por ora.
Naquela situação havia um maior desleixo com a própria aparência, em meio às dificuldades de se encontrar o básico da sobrevivência o ambiente não favorecia e as prioridades mudavam por completo. Loki não cuidava mais da barba delineada que agora lhe tomava a maior parte do rosto, tornando-se desgrenhada e começando a cair em direção ao seu peito feito o velho Merlin das histórias, as unhas tornaram-se sujas de terra por tanto procurar por raízes e plantar armadilhas de caça. Enquanto Friedrich, sempre de rosto liso e cabelo rente, agora se via com a barba fina lhe comichando, a franja cor de palha começando a tocar levemente as sobrancelhas, e as roupas manchadas de barro permaneciam no corpo por não haver mais tecido limpo disponível.
Mesmo que nenhum deles tivesse mais que três décadas de vida, em momentos como aquele acabavam por parecer bem mais velhos do que o eram. As linhas do rosto se tornavam mais evidentes, os olhos fundos como os de um crânio sem carne, a pele pálida feito seiva e de um toque áspero e sem vida, os corpos que mal tiveram tempo de recuperar-se da míngua do último inverno já se viam próximos a magreza da fome mais uma vez. Olhavam-se vez ou outra em silêncio, como se dividissem o olhar miserável que estampavam, perguntando-se se a figura da bonança já havia existido alguma vez ou era apenas uma breve miragem de muito tempo atrás.
Pois naqueles tempos os que pouco viviam, quando não faleciam por tragédia, seria pela fadiga a encurtar a vida.
Era final do dia quando os dois resolveram parar um pouco a caminhada e descansarem escondidos pelas árvores. Exausto e com as pernas doloridas, Loki adormeceu com a cabeça apoiada no colo de Friedrich que rezava em silêncio como sempre fazia rotineiramente no tempo livre. Há pouco tempo quiçá esse momento parecesse antagônico para o antigo frade, porém agora apenas queria agradecer a Deus por mais um dia de vida e pedindo que ajudasse não só eles como todo o mundo em desgraça naqueles tempos difíceis. A fé e Loki eram uma das únicas coisas que ainda lhe restava afinal de contas.
Mas a algumas dezenas de passos longes, chegando pela estrada em uma carroça puxada por dois cavalos velhos, Humberth, de Edimburgo, segurava as rédeas com o rosto encurvado, o cenho franzido enquanto pensava nos filhos espalhados um em cada ponta do mapa. "Ingratos...'', pensava com certo rancor misturado à preocupação latente que sentia a todo o momento, não sabendo como estavam e sentindo falta da presença de todos na estrada em sua companhia. Uma hora todos viraram adultos, criaram suas próprias famílias, e nenhum quis continuar acompanhando ele e a mulher pela estrada ou seguir o mesmo ofício que eles. Geralmente os filhos acabavam tendo a mesma profissão que os pais, era assim que funcionava e havia aprendido, por isso, para Humberth, era tão difícil aceitar a escolha feita por sua prole.
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Ode aos desafortunados
Historical FictionDISPONÍVEL AGORA NO AMAZON KINDLE VENCEDOR DO WATTYS 2020 na categoria Ficção Histórica. Um andarilho pagão luta diariamente para sobreviver na Inglaterra do século XIV. Vivendo como um curandeiro e sempre escapando dos olhos do clero, nem mesmo as...