"Acha que Deus se arrepende de Vossa criação?'' Emily indagara com o semblante vazio, os olhos tomados de uma dor profunda enquanto acendia uma vela do altar.
"Ele é somente o Perdão e a Misericórdia, nunca sua razão." Havia lhe explicado, mas ela apenas lhe olhou com o canto dos olhos claros, da mesma forma que uma criança faria ao ouvir os pais contando uma fantasia da qual já sabia não ser real.
"É engraçado como vocês sempre têm as respostas na ponta da língua." Ela deu um sorriso resignado, antes de estender-lhe a mão para que a pegasse como já haviam feito antes. Adrian franziu os lábios, hesitante e em dúvida, acabando por se colocar sobriamente ao lado da mulher, negando o pedido silencioso.
Adrian só queria poder controlar as próprias memórias, quem sabe assim sofreria menos pelos que nunca mais encontraria.
– É ainda mais pesado do que parece, tens de usar toda a força dos braços. – Irmão Bartolomeus explicou com calma, acordando Adrian de seus próprios pensamentos e lembranças. O frade mais experiente pegou a corda robusta, fazendo um sinal com a cabeça para que o imitasse. – Juntos.
O bronze realmente era muito pesado, mas depois de dois puxões que exigiu das mãos dos dois frades, o sino retumbou por toda a região, tão alto que Adrian sentia o próprio corpo retumbar em sincronia com sua batida, que atingia até muito fundo de seus tímpanos. Ao soltar a corda acabou colocando as mãos queimadas nos próprios ouvidos devido ao som ensurdecedor, enquanto ele e o outro irmão desciam as escadas de madeira da torre.
– Por que não há um sineiro nesse lugar? – Indagou inconformado, ainda sentindo as orelhas pulsando e as mãos queimando. Bartolomeus deu um riso curto.
– Os sineiros sempre acabam ficando surdos em alguns poucos meses.
– E isso não é favorável à eles? – Adrian perguntou sério, não entendendo por que o irmão riu novamente de seu comentário. Rir abre portas ao pecado pensou indignado.
– Bem, de certa forma, mas creio que cria muitas outras dificuldades. Por isso acho criativa a forma como o mosteiro lidou com isso, sempre alternando os irmãos a puxarem a corda do sino.
Adrian não retrucou mais, ficando apenas com o cenho carrancudo de sempre. Ao menos havia sido acompanhado por frei Bartolomeus, um dos poucos monges da qual havia simpatizado um pouco naqueles primeiros dias no mosteiro de São Columba – ou Columcille como os irlandeses chamavam – por ser assim como ele um estrangeiro vivendo naquele lugar, compreendendo melhor seus sentimentos de estranheza com aquele ambiente novo.
O irônico era como um monge marroquino parecia ter se habituado com mais facilidade no país diferente do que o inglês, que ainda se sentia deslocado naquele lugar novo, que não era tão diferente do próprio reino. Mas frei Bartolomeus era um homem diplomata e simpático, sempre estampando um sorriso brilhante em contrate com a pele escura a receber todos ao redor. Dificilmente Adrian se dava bem com pessoas assim, mas Bartolomeus, ao vê-lo sozinho pelos cantos do mosteiro, acabou quase que o apadrinhando como uma choca faria com qualquer filhote perdido. E apesar de ranzinza como sempre, Adrian até apreciava sua companhia, ficando encantado com suas traduções em árabe e estando interessado nos livros novos que ele havia trazido para trocar entre os mosteiros. Até por que, apesar das diferenças, havia certas coisas da qual eles concordavam em não entender sobre aquele lugar...
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Ode aos desafortunados
Fiction HistoriqueDISPONÍVEL AGORA NO AMAZON KINDLE VENCEDOR DO WATTYS 2020 na categoria Ficção Histórica. Um andarilho pagão luta diariamente para sobreviver na Inglaterra do século XIV. Vivendo como um curandeiro e sempre escapando dos olhos do clero, nem mesmo as...