Olho fixamente para a mulher da foto que tenho nas mãos. Por apenas um momento, acredito que estou a olhar para o meu próprio rosto. Os mesmos olhos azuis cristalinos. Os mesmos traços. Mas sei que não sou eu. Quem me dera que fosse.
Devolvo a foto à velha caixa que está diante de mim e retiro, em troca, um papel já envelhecido pelo tempo. São raros por aqui. Os papéis.
A minha bisavó costumava falar-me sobre eles. Dizia-me que vinham de árvores. Nunca me conseguiu explicar como eram, mas dizia-me sempre que eram como as plantas que temos aqui, embora muito maiores. Dizia-me também que se alimentavam da luz do sol e dos nutrientes da terra. Aqui, as plantas só precisam de luz artificial e duma mistura qualquer que lhes injetam nos caules. Nunca me pareceram tão fascinantes quanto as árvores e as plantas que só conheci através das suas palavras.
Seguro firmemente o papel nas minhas mãos, com medo que fuja, e decido, por fim, dobrá-lo cuidadosamente e colocá-lo no meu bolso das calças. Talvez as palavras contidas no seu interior nos deem a sorte de que precisamos. Estamos mais perto do que nunca. Pelo menos é o que nos dizem.
Hoje é dia da reunião semanal. Já devem estar quase todos reunidos na grande sala central. Demorei mais tempo do que pensava a olhar para a fotografia... a recordar. Tenho que me apressar.
Pego então na velha caixa e levanto-me do meu colchão, que protesta com a minha ausência. Tenho que baixar ligeiramente a cabeça para não bater no teto do pequeno quarto que divido com mais cinco raparigas.
Levo a caixa debaixo do braço direito até ao único armário do quarto e guardo-a na minha gaveta, ocultando-a com o meu vestido favorito, aquele que nunca visto. Escondo-a, não por conter algum segredo, mas porque é demasiado preciosa para a perder. E, como toda a gente sabe, mãos curiosas são sempre perigosas, nesse sentido.
Ao sair do quarto, fecho rapidamente a porta e começo a percorrer o longo e largo corredor apenas iluminado por pequenas luzes artificiais que se estendem pelo teto. Sei de memória que passo, neste momento, por inúmeras portas, todas elas iguais. Mas como nenhuma dessas portas me leva ao destino que pretendo, ignoro-as a todas. É apenas na porta aberta no final do corredor que presto toda a minha atenção.
Paro apenas a dois passos da porta. E, com o papel da minha bisavó no bolso, e na mente, respiro fundo e entro na grande sala central.
A sala está cheia. Mas ainda existem cadeiras vazias, por isso não estou assim tão atrasada como pensava.
Percorro aquele espaço hexagonal que já me é tão familiar. O branco das paredes apenas é interrompido por diversas portas metálicas que rodeiam a sala. Para qualquer lugar que queiramos ir aqui dentro, temos quase sempre de passar por este espaço.
Enquanto caminho aceno e cumprimento pessoas que me são conhecidas. Na verdade, aqui toda a gente se conhece, por isso quando me sento na minha cadeira, sinto o pescoço dorido de tanto acenar com a cabeça.
‒ Estava a ver que nunca mais vinhas, Aurora. Até cheguei a pensar que tivesses sido raptada por extraterrestres ‒ diz-me a minha melhor amiga, Analu, sussurrando para não destoar no meio de tanto silêncio.
Rimo-nos as duas, baixinho, com a piada. E eu faço o máximo esforço para controlar-me, a última coisa que quero é que fiquem todos a olhar para mim. A piada, na verdade, é a mais banal aqui por estes lados. Não somos todos nós, que vivemos aqui, extraterrestres, afinal de contas?
‒ Não, não fui. Pelo menos por enquanto ‒ respondo-lhe assim que consigo parar de rir, tentando colocar a cara mais natural do mundo.
E voltamo-nos novamente a rir. Não pela resposta em si, mas pela minha tentativa falhada de colocar uma expressão neutra.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Aurora
Science Fiction"Eu queria poder dizer-te que serás amada, muito bem cuidada e protegida, mas não te posso mentir. Este mundo onde vivemos já está cheio de realidades ocultas e a verdade parece-me, cada vez mais, um bem demasiado precioso para não o valorizarmos. ...