Capítulo 17

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Talvez isso faça de mim alguém altruísta. Não sei, nem quero saber. Só sei que tenho que ajudar. Seria impossível não o fazer.

O Salvador tentou dissuadir-me. Disse-me que era perigoso, que não era preciso eu envolver-me. Mas já não estava eu envolvida? E além disso, eu quero ajudar. Eu sei que o meu lugar na enfermaria e os meus conhecimentos e competências na área da saúde podem ser bastante úteis para aquelas pessoas.

Foi difícil convencê-lo, mas assim que lhe disse que seria muito mais fácil de roubar os medicamentos, e que não seria preciso roubar todos os medicamentos, mas apenas os certos, ele acabou por concordar.

O Salvador mostrou-me o que se encontrava no armário daquela sala. Vi tantos medicamentos lá dentro, que mal podia acreditar. Isso é o que dá não saber o que se está a roubar, pensei vitoriosa. A minha ajuda será muito mais valiosa do que pensei.

O armário também tinha alguns alimentos secos e águas. Reconheci as bolotas, os amendoins, as nozes, as batatas fritas... tudo alimentos a que nós, habitantes da nave, só temos acesso de dez em dez anos. Como é que ele os conseguiu arranjar? Por muito que me apetecesse ter-lhe colocado esta questão, não tive coragem. Acho que a minha cabeça já não conseguiria aguentar ter de processar mais uma informação nova.

– A senhora está ótima, essa tosse vai desaparecer dentro de 4 ou 5 horas com esse medicamento, não se preocupe – diz a Teresa, encaminhando a última paciente da manhã para a porta.

As suas palavras transportam-me de novo para o caso dos dois rapazes doentes existentes na sala secreta da nave. A mãe de um deles disse-me que já estão doentes há quase duas semanas, o que não é nada bom sinal. Sendo que são dois casos com sintomas tão similares, já me passou pela cabeça que pudesse ser contagioso. Acontece que mais ninguém parece ter sido afetado entretanto, o que me leva a deixar essa hipótese um pouco de lado.

Não sei do que se trata. Terei de levar alguns dos instrumentos da enfermaria para fazer análises mais conclusivas. Pode muito bem tratar-se de um vírus ou de uma bactéria. Se assim for, pode ainda só ter afetado esses dois rapazes por parecerem ser, das cinco crianças, claramente, os mais desnutridos. O sistema imunitário necessita de nutrientes para funcionar em pleno.

Não me tenho conseguido concentrar no trabalho. Ou penso nos pequenos rostos fragilizados daqueles dois rapazes de dez anos, que aparentam ter sete, no máximo oito anos. Ou penso nos olhos negros sem vida daquela senhora, que agora sei chamar-se Ângela Ribeiro, e na história que está por detrás deles. Ou na urgência de um diagnóstico que tenho que fazer, mas que não faço a mínima se serei capaz de o conseguir.

Eu não devia de estar aqui sentada a escrever relatórios, que não interessam a ninguém, quando a vida de duas crianças está em risco. Tudo, de repente, no meu trabalho me parece tão insignificante, comparado com isso. Só me apetecia largar tudo, e ir ajudá-los. Ajudar, verdadeiramente, alguém.

– Vens? – ouço a Maria a perguntar-me. Está perto da porta, a olhar-me como se eu fosse um ser estranho. Há quanto tempo estará ela a falar comigo? Ou melhor, a tentar falar comigo. – Podes vir almoçar, a Teresa diz que fica aqui.

– Na verdade... – começo. Tudo o que eu queria era sair daqui, mas pensando melhor talvez esta seja uma oportunidade que eu não posso recusar. – Eu quero acabar este relatório antes. Podem ir almoçar as duas, eu fico aqui.

– Sempre a pensar no trabalho – comenta a Teresa, lançando-me um sorriso, ao acabar de arrumar os últimos medicamentos na prateleira a que pertencem. – Um verdadeiro anjo que caiu do céu para me ajudar.

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